8 de novembro de 2016

Pétala

 

Da soleira da porta, arreganhava os dentes, incomodava-se com uma ou outra mosca que teimava em passear pelo vácuo abismal no meio de suas orelhas. Contorcia-se, dando voltas em torno de si mesma, como se pudesse atingir-se de súbito, numa pancada de encontro. Os olhos murchos, caídos em sinal de contínua espera entregavam uma outra dor: a solidão. Encaracolava-se no tapete da sala nos dias invernosos, e ali ficava, taciturna, a desmerecer cuidados mais extremos. Parecia cuidar bem de si e só se aproximava quando o faro lhe apontava sinais de amizade e confiança. O Seu Fabiano era rival, no céu dos cachorros e na terra dos homens. Batia as botas no toco de madeira em frente à calçada e Pétala corria para morder o calçado, cujo revestimento testava a força de seus caninos. Escorria a baba grossa, recheada de ira e desprezo. No auge das investidas, tinha desejos sanguinários, queria rasgar aquele bigode sujo de cerveja e destruir o chapéu de palha daquele velhote sacana, mas a estatura atarracada negava os intentos, o tamanho não era suficiente para o sonho tão estimado e nunca fora de ousar saltos maiores que a cerca de Dona Gertrudes, onde ia roubar os ossos do Tutano.

Do sono agitado, ficava o rabo balançante como um brinquedo elétrico. Viera rolando como herança de família, ninguém queria o animal estranho, que descachorrava-se em certas ocasiões e aprontava peripécias dignas de um ser humano atrapalhado. Pétala tinha manias de gente, uns olhares esvoaçantes de quem parte de si e fica a pensar no destino que não veio. Esperançosa, tinha no rabo o termômetro da alegria, mas não a desperdiçava com bobagens. Sorria para si mesma diante de um outro da mesma raça, saudava-o com manias de cheiros em membros quase invisíveis a olho nu. Arrastava-se numa passada mansa, já não tinha a pressa dos anos adolescentes e nem o vigor que a fazia encarar outros maiores que ela. Com o tempo, adquiriu consistência leve e um desdém admirável pelas coisas desimportantes, não se metia mais em brigas desnecessárias. Levantava o pescoço para um latido distante e resmungava alguma coisa ininteligível. As orelhas eretas pareciam antenas a captar o vazio da casa e das almas que ali esqueciam seus corpos. Pétala reconhecia os sábados como dias suspensos no ar, dias em que os corpos demoravam-se nos catres sujos, e sorrateiramente, ela subia na cama do menino Josué, fungava perto das narinas da criança para que o menino desamanhecesse e abrisse os olhos. "Pétala, bebê!" E lá ia Pétala despetalar-se nos braços de Josué, o menino. Josué dividia o pão como um discípulo obediente. Pétala averiguava os farelos e comia para não fazer desfeita. Gostava do menino, lambia os braços magricelos e cochilava no colo do pequeno. A tarde serpenteava vagarosa entre as margens do rio Paraíso, Josué e a cachorra seguiam desbravando o além-sem-fim de alguma estrada, a mãe perdia de vista o menino que compreendia os verbos da cachorra. "Tira esse bicho nojento daqui!" Era o que ela dizia quando Pétala se aproximava. O animal recolhia-se com olhares baixos e nenhuma vingança premeditada. Sabia que ali, mesmo ruim era o único lugar que tinha pouso garantido e se resolvesse alguma traição, seria banida e perderia o amor do menino Josué. Isso não queria nunca. Da fresta da porta da cozinha, aguardava um naco de carne ou alguma sobra do jantar de um dos viventes daquele lar que mais parecia uma casa mal-assombrada. O chão forrava-se de grãos amassados de feijão queimado, torrões que se destacavam entre punhados de casca de ovo. Não ia comer aquilo. Achava um disparate ter que vasculhar aquele lixo medonho e sujar as patas com baba de clara de ovo. Um verdadeiro desrespeito. Mesmo com toda cachorrada e algumas desobediências, merecia algo mais digno. Relembrou algumas obras recentes e desistiu de entender. Aquele era o pagamento por trinta e cinco escavações no sofá, dez tapetes irreconhecíveis, quarenta e três Havaianas (de cores diversas) destruídas, deglutição de três trabalhos escolares e algumas outras transgressões rotineiras... o vento começou a bater forte nas cortinas, já era hora de enrolar-se novamente no tapete da sala...

ESTER CHAVES é uma escritora brasiliense. Graduada em Letras pela Universidade Católica de Brasília e Pós-graduada em Literatura Brasileira pela mesma instituição. Atuante na vida cultural da cidade, participou de vários eventos poético-musicais. Já teve textos publicados em jornais e revistas. Em junho deste ano, teve o conto “Os Voos de Josué” selecionado na 1ª edição do Prêmio VIP de Literatura, da A.R Publisher Editora. É colunista nos sites “CONTI outra, artes e afins”, “A Soma de Todos os Afetos”, “Escritos Meus” e “Fãs da Psicanálise”.