Rachar átomos e depois, de Ricardo Escudeiro
PUGILATO EM PONTA DE FACA: o ringue da poesia em Ricardo Escudeiro**
Ricardo Escudeiro (1984), poeta, vocalista e lutador de Muay Thai, levou seus versos para o ringue e subverteu o conceito de fazer poesia sobre si e os seus. Estamos num tempo de luta, de disputas, de guerra de egos e vaidades, e o poeta é aquele ser mais vaidoso e prepotente que se vê como representante da história de sua geração. É assim que temos de ler o Escudeiro em seu Rachar átomos e depois (Editora Patuá, 2016).
Devemos lê-lo com o mesmo sangue nos olhos com que creio que ele escreveu cada verso, a ira e a decepção de mãos grudadas em cada mirada que deu ao seu redor.
Este volume pode parecer um compêndio de meras lamentações cotidianas, mas logo de saída, o título da primeira parte do livro se desvela para o leitor como um questionamento não concluído, interrompido, que nos convida à reflexão merleau-pontyana sobre a ontologia da percepção estética: será que o olhar da imagem vê mais que o olho que a contempla. Assim, sem ponto de interrogação, golpe seco. E ainda confronta o leitor com o espelho invisível da imagem que nos vê enquanto a vemos. Onde está o choque estético? O que nos compele a entrar nesse ringue e erguer os punhos em luta? Esta é a questão que se abre a partir de então.
Reproduzo o segundo poema do livro
there will be blood
with Daniel Day-Lewis and Paul Dano, 2007
em uma obra de Leonardo Mathias
perfuratrizes
na possibilidade da espera seguimos
expandindo
nadas
Aqui, enquanto a broca segue mastigando bocados de terra rumo ao centro, que não se sabe qual, permanecemos inertes e inabalados, enquanto nosso ego se expande para lugar nenhum, sem sentido, sem rumo. Algo muito próprio de nossa geração e de nossos dias perdidos em questionamentos vagos e desprovidos de razão.
O poema seguinte, “Eye of the tiger”, que abre com uma citação de Muhammad Ali, “Float like a butterfly, sting like a bee”, traz para o universo da reflexão o cenário do pugilato que deve ser este ringue imenso, circunscrito no seio urbano do universo de Escudeiro. Assim,
o soco e o outro
vez ou outra abdicar da esquiva
ir de encontro
só
quebra o que é dente
só
jorra o que é sangue
só
dói o que é corpo
No poema, com jabs na ponta da luva, às vezes, diante do outro, seja lá o que o outro vos queira representar (afinal, a poesia precisa cristalizar acima de tudo o repertório do leitor, não apenas do poeta), Ricardo joga a toalha e se deixa atropelar pelo adversário. Dá-se ao suicídio para sentir no castigo físico sua própria corporeidade, como se os dentes que se quebram, o sangue que jorra, o corpo que dói, provassem que, obliterado, ainda está vivo e tem uma capa falível de carne para se atestar disso. O mesmo mal-estar que nos atrai, nos erotiza e nos faz fantasiar dias melhores, quando o que queremos, de fato, é o poço absoluto.
A prosódia de Ricardo Escudeiro é uma marca muito pessoal. Ainda buscando respostas de seu corpo em seu mundo no corpo e no mundo do outro, volta sua atenção ao pobre diabo comum, como se já não houvesse mais separação entre o “eu” e o “tu” nos estertores do mundano. Por isso,
é nóis
em toda padaria
esquina
ou calçada qualquer escondido no pretexto pra uma rima
tem um pobre
diabo que amassa
na chapa
o pão e o dia
próprios
um pouco do nosso
no de cada
Um poema experimental, em que os versos fraturados funcionam como a pausa para cada detalhe do observador. O que me agrada em poetas de minha geração é como alguns conseguem ironizar o preconceito da “rima” de maneira tão cínica e precisa, o que está ali, logo nos segundo e terceiro versos. Pode-se dizer que há uma auto-ironia por colocar-se como poeta, mas apresentar uma cena prosaica, do dia-a-dia, que pode não ter lá sua beleza explícita, mas está em nós, mesmo que não queiramos. E novamente o espelho da carne: um pouco do nosso / no de cada. Certeiro como um cruzado.
O domínio da teoria e da história do poema fica evidente na adaptação que Escudeiro faz de uma cantiga de amor reproduzida na logopeia contemporânea. Cito um trecho:
ah mia senhor fremosa
aqui donde piso
por vontade tua
jamais por própria
clamaram estribilhos
soltos
É um alento ver, no meio dos átomos rachados de Ricardo Escudeiro, que há poetas que se preocupam em saber do passado da língua e da literatura, para trovarem seus versos à moda do antes, pensando o presente. Há uma tendência cancerosa que prega que não é preciso conhecer para fazer, pois que isso seria genuinamente original, transgressor. Balela. Creio que seja este o problema maior encrustado na péssima qualidade dos poetas que andam por aí, rodeados de carcarás, numa dinâmica de retro-bajulação que em nada contribui para o espólio imortal da poesia, que acham que estão escrevendo.
Voltando ao ringue, lá pelas tantas surge um poema que se coloca como erupção, “Steel dawn”. A influência da cultura pop, do legado deixado pelos filmes que vimos nos anos 1980.
desde pequeno encontro
mais terror
nos des tópicos pós apocalípticos
grunhidos em um mad max
do que nas afrontas à batina
de um exorcista
Todo lutador sabe que se é para ter medo, que seja do oponente à sua frente, não das fantasias descabidas de uma mente que pensa por si quando elucubra um combate que pode não existir, uma angústia sobrenatural que somente existe na cabeça da vítima. Medo mesmo, o poeta tem de um mundo que caminha a passos largos para seu fim, e que pode estar mais próximo do que se pensa. Medo mesmo é de ter de ver o horizonte árido, as pessoas deformadas, bestializadas, guerreando por água ou por gasolina. Matando seus irmãos para não morrerem. Isso não tem nada que ver com religião, demônios e rituais. Isso tem a ver conosco. Com o real, o palpável, que se desfaz.
Eu poderia dissecar cada poema, cada verso deste Rachar átomos e depois, mas creio que isto deva ser feito por algum crítico atento de uma futura geração, em busca de bom material para trabalhar.
Gostaria de concluir o breve percurso, que espero não ser o único ou último, evocando o conteúdo do poema que dá título ao livro, em que Ricardo Escudeiro perfaz um roteiro do corpo, do extracorpóreo e que lhe está em si.
ah esse
se faz mais que a carne e o tempo
in verso
poltergeist que nos tenta
dá pras gentes o que não
é de gente
contatamos com o plano etéreo
Antes, já havia o medo da distopia, porque ela está esfregando o falo em nossa face o tempo inteiro. O sobrenatural não tinha sentido. Mas, neste poema, vemos que o autor sente, sim, seus calafrios pelo que não pode ver. Não por medo, mas por uma urgência do desejo de encontrar uma resposta que não está no palpável. Quem sabe não seja o fenômeno sobrenatural advindo da estática da TV fora do ar o fio condutor de cada átomo rachado, cada partícula que nos compõe, seres falíveis e ridículos que procuramos na poesia uma resposta que não se realiza?
Ricardo Escudeiro acertou seu gancho certeiro e mais uns golpes de pernas, para calejar sua voz poética e para ferir a lírica de quem acha que poesia deve confortar.
Foi-se o tempo em que Hegel professava o bem-estar por meio da arte. Também foi-se o tempo em que Buñuel afirmava que arte deve chacoalhar o espectador e dar-lhe choques. Mas entre as duas teorias, o Ricardo escolheu a certa: sangue nos olhos, faca nos dentes, esquiva armada, gongo, e vários átomos do incômodo, do engulho, da dor cotidiana irremediável, mas necessária, rachados.
*Donny Correia, poeta e cineasta, é mestre e doutorando em Estética e História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Letras – tradutor e intérprete pelo Centro Universitário Ibero-Americano (Unibero). Realizou os curtas experimentais Anatomy of decay, Braineraser, Totem (selecionado para a 34ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e Prêmio Canal Brasil) e In carcere et vinculis. Publicou os livros de poesia O eco do espelho , Balletmanco, Corpocárcere e Zero nas veias. Organizou, ainda, com Marcelo Tápia, o volume Cinematographos, antologia da crítica cinematográfica, com textos críticos escolhidos do poeta Guilherme de Almeida para sua coluna cinematográfica no jornal O Estado de S.Paulo, entre 1926 e 1942. É coordenador de programação da Casa Guilherme de Almeida.
**Ricardo Escudeiro nasceu em Santo André-SP, em 1984, onde vive. É autor dos livros de poemas “rachar átomos e depois” (Editora Patuá, 2016) e “tempo espaço re tratos” (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, desenvolve projeto de mestrado com interesse em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos de Gênero. Assina a coluna “desglutição”, no Portal Heráclito, e é um dos colaboradores da Mallarmargens. Atua no ensino fundamental II, no ensino médio e como assistente editorial na Patuá. Possui publicações em mídias digitais e impressas: site da Revista CULT, Mallarmargens-revista de poesia e arte contemporânea, Germina-Revista de Literatura & Arte, Jornal RelevO, Revista SAMIZDAT, 7faces caderno-revista de poesia, Revista Pausa, Flanzine (Portugal), Revista Mortal. Publica poemas mensalmente na Revista Soletras, de Moçambique. Participou das antologias “29 de abril: o verso da violência” (Editora Patuá, 2015), “Patuscada: antologia inaugural” (Editora Patuá, 2016) e “Golpe: antologia-manifesto” (Punks Pôneis, 2016). Foi poeta convidado no Espaço Literatura da 13ª Feira Cultural Preta. É vocalista e guitarrista da banda Catastrophear.