13 de setembro de 2016

A festa

(Ainda lembro. Principalmente quando as músicas dos anos oitenta resolvem interferir na modernidade dos dias. Poderia lembrar em outras ocasiões. Mas é assim que acontece.)

Ele era lindo. Principalmente quando a definição de lindo se refere aos tipos exóticos. Muito branco, muito alto, cabelos muito pretos cortados em um estilo duvidoso. Lindo. Tocava baixo no grupo anônimo da cidade. Perfeito.

Tudo estava pronto para o encontro da turma. Bebida comprada, casais previstos e as possibilidades de sempre. Todo mundo vai estar lá. Meu pai não vai deixar. Inventa uma desculpa. Fala que a mãe da fulana vai levar e buscar. Fala que ninguém vai beber. Eu vou.

A noite esperada demorava uma eternidade, mas sempre chegava. O lugar escolhido. O pessoal com violões aos montes, vozes desafinadas, emoções afloradas e muita coisa pra aumentar o teor etílico de nossos sangues. Perfeito.

Ele estava lá. No baixo, com aquele olhar concentrado. O pessoal iniciava os trabalhos. Bebida, chegadas e beijos. Todos os amigos. Todos os desejos. Os músicos se aboletaram ao lado da fogueira. Tudo era organizado do alto de uma serra, uma vista linda, uma lua absoluta, uma ansiedade eterna. Quem será que eu vou beijar? Será que eu vou beijar? Beijar?

Geograficamente era fácil identificar os grupos que se formavam. Os nerds, as patricinhas, os descolados. Eu não me encaixava em nenhum. Era qualquer uma.  Ela também estava lá. A namoradinha do baixista. A do guitarrista também. Todas as concorrentes prontas para a batalha. Todos os meninos também. Seriam meninos eternos dentro de nós. As preferidas ficavam próximas aos músicos. Eles, teoricamente cantavam pra elas, embora alguns olhares escorregassem para as desgarradas desse grupo seleto. Como desgarrada, era necessário ter o olhar perfeito, o sorriso justo o tempo certo. Ele olhava pra mim. Ele sorria. Era certo. Ele olhava para mim. Não havia mais ninguém ao lado. Era para mim. a namoradinha havia desaparecido. Talvez alguma briga. Talvez a rigidez dos pais. Talvez o universo conspirasse ao meu favor. Os acordes da minha música começaram a descolar dos violões. A minha música preferida. Ele sabia qual era, com certeza. Só podia saber. Não era as das mais tocadas e eles tocavam lá, no meio da madrugada. Alguns casais já se formavam. Os mais caretas já tinham isso embora. A noite estava boa demais. Ele olhava pra mim. Mais um copo de alguma coisa que eu já não identificava o gosto desceu pela minha garganta pra aliviar a tensão. O coração batia forte. Não havia mais nada. Nem a fogueira, nem o luar nem os músicos. Só ele e o baixo. Ele olhava pra mim.

Ele olhou de lado e fez sinal pra alguém. Um cara estranho pegou o baixo e começou a tocar. Tocava muito mal, mas ninguém reparava. Todos cantavam emocionados. Ele pediu um copo. Bebeu perto dos músicos e dos seus. Ele olhava pra mim. Se o mundo acabasse naquela hora, seria perfeito. Se eu fosse infeliz o resto dos meus dias, não haveria problema. Ele olhava pra mim. Ele sorria também. Talvez o universo estivesse prestes a explodir. Ele olhava pra mim. Senti minha amiga me cutucar e segredar: ele está olhando! Não era preciso me avisar. Eu já não estava ali. Eu já morava no olhar dele. Ele veio em minha direção. Passos lentos, sorrindo pra todos, parando pra cumprimentar os amigos. Caminho longo. Ele chegou. Bem ali, ao meu lado. Não disse nada. Só chegou. A fogueira já era só brasa.

- Legal a festa, né?

- Legal.

Ele fingiu dançar. Fingi não perceber. Dancei um pouco também.

- Gostou do som?

- Legal.

Idiota, Poderia ter dito milhares de coisas e só me restou o legal. Mas ele sorriu. Olhou pra mim, Estava tão perto.

- Pô, legal mesmo que você curtiu.

Ele estava na minha frente e todas as palavras do mundo se foram. Não saberia dizes mais nada. Sorri também.

- Teu sorriso é mó maneiro.

Fiquei feliz por ele conseguir dizer alguma coisa, por mais boba que pudesse parecer. Um torpor esquisito se apoderava de mim, deixando minhas pernas bambas. Ele percebeu. Eu tive vontade de fugir. Ele pegou na minha mão e sorriu bem perto de mim. Eu olhei para ele. Era a única coisa que me restava naquele momento em que nada mais precisa ser dito. Ele era tão lindo. A pele tão branca. Os cabelos tão pretos. Os lábios tão próximos. Estavam perto mesmo. Tão perto que eu podia sentir o calor deles. O calor e a umidade. O calor e o hálito. O calor e o toque. O calor. Fechei os olhos e foi aí que o mundo, definitivamente, acabou. Poderia haver qualquer som, qualquer tragédia, qualquer hecatombe que nada importaria. Os lábios dele tocaram os meus. Não tive certeza, mas um som de amigos espantados pareceu soar ao longe. Ele me beijava e nada mais importava. Nem a festa, nem a namorada dele, nem o futuro da humanidade, nem a minha ética parca. Ele me beijava.

O beijo durou o tempo de um beijo. Durou o tempo exato pra ser eterno. Mas era pouco. Nos beijamos mais. Nos beijamos muito, a noite inteira entre sorrisos, balbucios, mãos e brincadeiras.

O maior problema das coisas boas é que elas acabam. A música acabou. A fogueira apagou. A noite se desfazia. Alguém o chamou.

- Tô indo.

Dizia tudo meio sorrindo. Vai, meu lindo. Sorri também.

- Tudo bem.

- A gente se vê.

Sorri a certeza daquela mentira.

- É.

Ele foi. Mentira de novo. Não foi nunca mais. Nem ele. Nem a música. Nem a fogueira. Nem a festa. Nunca mais.