18 de julho de 2016

A consciência pútrida de 'À beira do corpo'

 

Não sei se há, mas talvez devesse haver, um estudo sobre a presença do verme na literatura brasileira. Assim rapidamente, lembro do famoso verme machadiano, a quem o Memórias Póstumas de Brás Cubas é dedicado. Lembro ainda dos muitos vermes que infestam a obra de Augusto dos Anjos, em poemas comoPsicologia de um Vencido e Deus-verme. E temos o verme-narrador de Walmir Ayala, no seu livro À Beira do Corpo.

A presença do verme indica outra presença, anterior: a da morte. O verme aparece para roer o corpo morto, devorar suas carnes pútridas. Em À Beira do Corpo, o verme passeia pelo corpo assassinado de Bianca e, à medida que passeia, relata sua história. Uma história clássica de traição e vingança.

Bianca, dezessete anos, está prestes a se casar com o ferreiro Vicente. Um dia, porém, vê chegar Sebastião na ferraria do futuro marido, em seu cavalo de tenente, querendo trocar ferraduras. Uma cena quase de conto de fada: o príncipe encantado aparecendo à mocinha num belo e lustroso cavalo. Bianca sente-se logo atraída por Sebastião e o problema já está desenhado. Dois homens disputando a mesma mulher.

Disputa não é bem o caso. Bianca quer casar-se logo com Vicente pois deseja sair da casa do pai, que a sufoca. Vicente é um bom rapaz, trabalhador, responsável. Bianca decide antecipar ainda mais o casamento quando descobre que o belo e arrogante Sebastião, com seu duro olhar azulado, é casado. Bianca vê frustradas suas vagas intenções amorosas e quer logo casar-se com Vicente. Liberdade! Bianca crê que com o casamento, livraria-se da influência do pai e de Sebastião.

Engana-se, claro.  Seu coração já é de Sebastião. Daí não haver disputa entre os homens. Bianca ama Sebastião. Tudo aquilo que os outros repudiam no tenente, ela ama. Sua arrogância, sua dureza, sua brutalidade. Mesmo assim, casa-se com Vicente. Na saída da igreja, como um espectro que a assombraria pelos meses seguintes, vê Sebastião em seu cavalo.

Não demoram a ter um caso. Ajudada pela sua empregada Flora, Bianca recebe Sebastião em sua casa manhãs seguidas. Rapidamente a fofoca se espalha. Todos ficam sabendo do caso, vizinhos, amigos, e até sua irmã Celina. Só Vicente não sabe, como a confirmar aquele velho dito de que o marido traído é sempre o ultimo a saber. Bianca não consegue se afastar do amante. Seus vizinhos e amigos, porém, se afastam dela. Passam a vê-la como uma pecadora, mulher indigna do bom marido que tem. Bianca não se importa. Ama Sebastião e é incapaz de abandoná-lo para ser apenas a boa esposa de seu bom e monótono marido.

Não há dúvida que no julgamento que os outros fazem de Bianca pesa o fato dela ser mulher. Fosse o contrário, fosse Vicente o traidor, provavelmente não haveria tantos olhares tortos e escandalizados. Mas Bianca não cede nem aos olhares, nem as fofocas alheias. Incomoda-se. Sofre. Teme. Mas seu corpo não é capaz de se afastar do de Sebastião. Está presa a ele. Presa está também ao julgamento da sua pequena comunidade:

Seu nome é Bianca, mas dever-se-ia chamar “amargurada”. Tudo ia em direção a ela, neste páreo de êxtase e suspense, e ela não sabia. E este tudo era o prêmio de todos os mortais, as lágrimas, o medo, a morte. Com luminares de amor se resguardava nesta procissão de perigo. Os dias prosseguiam. A porta da casa de Bianca e Vicente era visada pela unida população de Vila Nova, unida no gozo intenso daquele acontecimento. A coragem de Bianca escandalizava invejosamente as mulheres. O garbo do Tenente Sebastião era uma cruz no cotidiano emperrado dos homens de bem, assim ditos. O Padre Nilo ainda mandou um bilhete para Bianca pedindo que fosse vê-lo. Ela, se defendendo, não foi. Assim tudo se decidia. Só Vicente passava inocente entre risos e olhares duros.

A história de À Beira do Corpo tem algo de autobiográfico. Aos quatro anos de idade, Walmir Ayala perde a mãe, morta pelo próprio marido, por adultério. Assim como Vicente, que ao saber por Flora do caso da mulher, mata Bianca e Sebastião. O pecado de Bianca aos olhos da comunidade de Vila Nova é tamanho que quem dá a arma do crime a Vicente é o próprio pai de Bianca, Piero:

Você pensa que eu não estou sofrendo? Você me mataria agora, para fugir a uma responsabilidade que lhe cabe. Quem é o culpado de que ela esteja procedendo assim? Eu, você, ela mesma, sobretudo ela. Nasceu com o vírus no coração. Constate e cure Vila Nova desta chaga. Eu há muito me esqueci de que ela existe, posso dizer que me acostumei com a sua morte.

Na segunda parte do romance, vemos Vicente na cadeia. Aguarda julgamento. Percebemos que aquele verme-narrador era fruto de sua imaginação, de sua consciência pesada. O verme, sua consciência, percorre o corpo morto de Bianca, num erotismo mórbido que contrasta a beleza do corpo jovem e seu destino trágico.

O fato chocante, porém, é que Vicente é absolvido. Como isso é possível? Um assassino confesso livra-se da prisão. E livra-se porque Bianca já havia sido julgada antes, muito antes de ser morta. Seu crime era anterior, e mais grave. Havia traído. Havia pecado. O que afinal restituiria a honra de Vicente, senão a punição máxima à esposa e amante?

Honra se sobrepondo à vida. Uma moralidade em que a morte pode ser tolerada, aceita, justificada em nome da honra é imoral. Bianca era aquela pessoa “errada” diante da qual os outros podiam ver-se sob melhores luzes. Eu não faço isso, eu não sou Bianca! Bianca, a pecadora, a traidora, tornava santos aqueles que a recriminavam. Bianca era o pecado visível, o pecado ambulante que todos podiam apontar e condenar. Teve o que merecia. Vila nova estava livre.

Não sem razão, após o veredicto, o advogado do caso pergunta aos presentes se não havia culpa também em outros. Será que havia culpa no Padre Nilo, que fugia de Bianca quando essa queria conselhos? Será que havia culpa em Piero, que além da dar a arma a Vicente, era um pai pouco afetuoso? Será que numa comunidade tão consciente da idéia de honra não haveria nenhuma consciência do perdão?

Bianca morta, descansa. Vicente absolvido, sofre. Terá que refazer sua vida. Terá de conviver com o verme inquieto a avivar-lhe às memórias. Walmir Ayala conseguiu, num livro curto e muito bem escrito, tratar de um tema clássico na literatura e pessoalmente importante para ele. Um livro pungente e doloroso que, talvez, serviu para o autor expurgar sua própria dor.

 

Cahoni Chufalo, formado em Letras, com pós-graduação em crítica e curadoria de arte. Fez a curadoria das exposições Memória Imprensa, em Outro Preto e Figuras Recorrentes, em Novo Hamburgo. Mantêm o blog fiaposblog.wordpress.com