18 de maio de 2016

Entre as vanguardas e o fascismo

 

O século XX pulsava inovação e revolução. Permeado pela necessidade de transformações sociais, este é um período de novas perspectivas na ciência e nas artes. Desde 1870, a França vivia um momento de profusão de vanguardas. Desde Delacroix, Courbet e Manet, passando por todos os impressionistas (os célebres Monet, Degas, Pissarro, Renoir etc), até os chamados pós-impressionistas (Gauguin, Seurat, Van Gogh e Cézanne, principalmente), as novas ideias emergiam e substituíam antigos parâmetros nas artes visuais. Com a intensa industrialização das cidades, os novos modos de vida pulsavam, a velocidade do deslocamento, da produção, era crescente. O pacato cotidiano dos séculos anteriores era substituído, de forma progressiva e irrevogável, pela agilidade imperativa da nova configuração.

Representação já não era o horizonte da pintura. A intenção agora era capturar uma fluidez, justamente essa mobilidade recém-incorporada pelos centros urbanos, transmitir a sensação de agitação, de transformação, por meio de técnicas jamais antes utilizadas. Cézanne propôs representar, em uma mesma tela, objetos vistos por duas perspectivas diferentes, como a jarra e a mesa de sua Natureza morta com maçãs e pêssegos, de 1905. Essa ideia, por sua vez, de explorar os diferentes pontos de vista acerca de um mesmo objeto, foi adotada por dois artistas de fundamental importância no desenvolvimento da criação artística: Pablo Picasso e Georges Braque, principais integrantes do Cubismo.

Há, sem dúvida, algo curioso. Mas o quê? Sim: todos os artistas citados acima viviam em Paris, além de outros que, mesmo não listados nesse texto, constituíram partes essenciais da (r)evolução artística do princípio do século passado. Profundamente incomodado com tal predomínio francês nas vanguardas artísticas, o escritor italiano Filippo Marinetti (1876-1944) publicou, em 1909, seu Manifesto Futurista, movimento autointitulado que envolvia também os artistas italianos Umberto Boccioni, Giacomo Balla, Luigi Russolo, Benedetta Cappa, entre inúmeros outros. A proposta era inserir a Itália no mapa da arte moderna adicionando movimento ao estático Cubismo de Picasso e Braque: explorar, sim, as novas perspectivas traçadas pela vanguarda francesa, mas inundá-las de movimento, capturar a essência da sociedade moderna, as transformações. Poucas obras ilustram com tanta clareza a intenção do Futurismo quanto Dinamismo de um cão na coleira, pintado por Giacomo Balla em 1912.

O movimento italiano fez da modernidade o objeto de sua arte: máquinas, cidades, o movimento intenso, retratados com a harmonia de cores vibrantes e formas geométricas. Umberto Boccioni, outro artista fundamental do Futurismo, ilustra, em seu tríptico Estados de espírito (1911), o impacto da interação entre homem e máquina (neste caso, um trem), nas telas Os que partem, As despedidas e Os que ficam. A herança cubista é gritante nessa série – inclusive, Boccioni a pintou duas vezes: antes e depois de visitar uma exposição de Picasso, em Paris.

Até 1916, essa relação homem-máquina, a urbanização, as cores vibrantes e sua oposição no círculo cromático caracterizaram o Movimento Futurista. Contudo, com a morte de Boccioni e de inúmeros outros artistas integrantes do grupo, além da publicação do Manifesto Fascista, o otimismo presente na Europa antes da Primeira Guerra se esvaía. E essa "segunda fase" do Futurismo assumiu um caráter distinto: seus artistas propunham a arte futurista não apenas na pintura, mas na escultura, na moda, na performance, na música, no design. Eles queriam reconstruir o mundo sob um olhar moderno. A palavra ruptura assumiu um papel importante. E o Manifesto Fascista seduziu, de certa forma, os artistas do Futurismo justamente por propor uma nova forma de organização social, algo totalmente novo. A relação entre o movimento artístico e o fascismo ocorre exatamente nessa busca pela mudança, por uma ruptura total e a proposição de algo diferente, algo melhor. Mussolini, porém, preferia a arte clássica, e jamais oficializou o Movimento Futurista como representativo do regime fascista (como era o Suprematismo na Rússia Socialista de Lênin, por exemplo).

A vanguarda italiana que fez do Futurismo um movimento relevante na história da arte utilizou elementos técnicos e ideológicos que perduraram somente até 1919, quando todo o grupo assumiu outro propósito. Foi só na década de 1940, já com o fim da Segunda Guerra e a morte de Mussolini que os jovens artistas italianos encontraram espaço para novas produções, uma nova filosofia e técnicas distintas do que pregava o movimento antes liderado por Filippo Marinetti.

Contudo, por mais que consideremos o Futurismo como um movimento que existiu somente até 1919, sua relação com fascismo é indelével, uma mancha trágica na história de uma das mais relevantes vanguardas europeias do século XX.

 

Giovani Kurz