3 de maio de 2016

Uma janela em Berlim

Da janela do seu apartamento na rua Schillingstrasse número nove, perto da praça Strausberger Platz, Sr. Walter observa o que restou do barulho e da alegria do brilho dos fogos do Reveillon.

Agora já é ano novo. Dois mil e dezesseis.

Pelo jeito soltaram foi fogos nesse Reveillon. Ô gente fogueteira.

Sr. Walter quis continuar morando em Berlim depois da morte da esposa. Os outros filhos o chamaram para morar no sul, onde havia mais sol, mas ele se recusou. Já tinha se acostumado com a correria e as cores, as pessoas simpáticas e as briguentas de Berlim. Tinha a turma de brasileiros, amigos de Tereza e também seus amigos. A professora de português da Escola do Povo morava no bairro e sempre que cozinhava um feijão, levava uma porção num potinho para seu Walter.

Ele mantinha uma certa alegria de caminhar pelas ruas do bairro, passar na frente do cinema, uma sensação que lhe fazia bem, ainda que sem compensar a falta que Tereza lhe fazia. Mas precisava essa falta ser compensada?

Havia sim uma solitude, mas não era tristeza. Sandra e Rene ainda moravam no apartamento imenso, antigo de mil novecentos e doze, mas era como se morasse sozinho. Cada um tinha sua vida e estava bom assim. A maioria da mobília ele tinha comprado com Tereza antes de se casarem, fora o sofá antigo com flores na madeira trabalhada e o aparador de carvalho que tinha herdado da mãe.

Walter comprava um buquezinho de flores no supermercado e enfeitava sua mesa de café da manhã. Era assim que a esposa fazia.

Ele abria a janela da sala e via outras janelas. Parecia um quadro surrealista: janela com vista para a janela com vista para a janela com vista para a janela.

No inverno desta cidade muitos dias transcorrem cinzas e de repente o que tem por trás de uma janela é mais interessante que a paisagem.

Sr Walter costuma se encontrar com os amigos pro almoço, na rua Friedrichstrasse. Os mesmos amigos, o mesmo local, há anos. Igual, mas diferente. Tem muita moçada por aqui agora e seu Walter gosta de observar. Agora se pode ouvir jovens falando árabe na Alexanderplatz, Berlim está mudando.

Tereza não gostava do paninho que a sogra punha no sofá. Achava muito "de alemão". Mas esse restaurante na Friedrichstrasse tem paninho na janela: "muito de alemão", pensou seu Walter, sem comentar com os outros.

No restaurante, ele e os amigos aposentados conversam bobagens e se divertem. Alguém contou uma coisa tão engraçada que Sr. Walter riu muito e sua barriga até doeu. Agora ele não se lembra mais.

Pela janela do metrô ele vê uma propaganda do novo cd de David Bowie, que morreu ontem. Outro que morreu novo.

Quando ele volta pra casa já está escuro. A professora de português passou por lá e deixou um bilhete na porta: Semana que vem não vai ter aula. Podemos repor esse sábado. Faço um feijãozinho pra nós, a Marguerite vem também.

Seu Walter decide que vai na aula de reposição no sábado, precisa falar melhor português quando as visitas do Brasil chegarem na páscoa.

Uma certa pujança ele reconhece dentro de si, de continuar, uma curiosidade pela vida. Felicidade? Tesouro?

Walter pensa que tem que aprender a usar o telefone celular que era de Tereza. Sandra vai lhe ensinar.

 

Valeska Brinkmann
Nascida em 1972 Santos-SP, caiçara, estrangeira em todo lugar. Estudou Rádio e TV na FAAP, em São Paulo e lá morou até ir para Berlim em 2003.  Integrante do Círculo Literário de Berlim. Há dez anos trabalha na TV berlinense RBB. Para Valeska, Berlim é uma mini São Paulo funcionante. Gosta de andar de metrô e trem. Gosta de ouvir rádio alemã e de contar histórias para crianças.  Há alguns anos escreve, histórias para crianças e alguns contos.