23 de fevereiro de 2016

A sorte

Era uma bela peça. Pequena, praticamente cabia na palma da mão. Cabo de madrepérola, cano curto, aço de submarino alemão da segunda guerra mundial. Pelo menos era isso que o vendedor havia dito. Tudo feito muito direitinho, com registro de arma, documentação correta. O calibre era 32. Já dava pra fazer o estrago que desejava. Observou a arma, abriu o tambor, tirou as balas, fingiu atirar. Brincou com ela durante alguns minutos, quase esquecendo do que ela era capaz. Mas era pra relaxar. Uma arma é responsabilidade. Uma arma é um perigo. Aquela não. Aquela seria usada para um fim muito específico. Para o seu fim.

Abriu a janela. Não quis inspirar fundo. O apartamento pequeno e antigo dava vista para uma avenida movimentada, poucas janelas pelo resto do espaço, não havia ar para respirar. No apartamento também não havia. Tudo o sufocava. A solidão imensa, o emprego medíocre, os casamentos desastrosos, sua vidinha mediana, que seria eternamente mediana. Poderia dar um tiro em sua própria testa que o cadáver ficaria ali por semanas. A polícia entraria chamada pelos vizinhos quando o cheiro estivesse insuportável. No velório apenas alguns colegas de trabalho e um túmulo que jamais seria visitado. Não faria falta para ninguém. Nem para si mesmo. Era um nada.

Sentou-se no sofá com a arma na mão. Olhou para ela seriamente. Escolheu uma bala das seis que havia comprado. Colocou no tambor, girou e fechou no tranco. Sentiu-se um caubói dos velhos filmes de western. Seria assim, quem decidiria sobre a sua vida seria a sorte.  Todos os dias pela manhã rodaria o tambor, colocaria o cano curto da arma na têmpora e atiraria. Roleta-russa.  Tinha visto em um filme e tomado a decisão que a sorte seria sua mandatária. Ela iria escolher a melhor data para morrer. Aquela manhã de domingo inauguraria essa nova etapa da sua vida: o caminho da morte. Sentado no sofá, levou a arma à têmpora. Suspirou. Fechou os olhos. Puxou o gatilho. Baque seco do metal no vazio. A sorte havia lhe dado mais um dia.

Não sabia o porquê, mas sentiu-se relativamente aliviado. Um dia a mais. Era bom que aproveitasse. Pegou a bicicleta e foi para um parque próximo pedalar. Tomou um picolé de limão. Comprou o jornal do dia. Pedalou até o fim da tarde, deixando o vento bater em seu rosto. Poderia ser seu último dia, sua última tarde. Preparou um macarrão com especiarias para jantar, quando chegou à noite em casa. Poderia ser sua última refeição. Comeu, tomou um banho morno e dormiu tranquilo. Seu provável último dia havia sido bom.

As manhãs de segunda-feira não costumam ser muito agradáveis. Prenunciam a semana longa e tediosa. Mas aquela não. Conversaria com a sorte logo cedo. Dessa vez optou pelo banheiro, na frente do espelho. Olhou-se, girou o tambor mais uma vez, fechou-o no tranco e aproximou o revólver da têmpora e puxou o gatilho. Nada. O mesmo som de metal no vazio. Teria mais um dia. Não sabia se seria bom, mas era o trato. A sorte mandaria em seus dias. Arrumou-se cuidadosamente e seguiu para o seu segundo provável último dia. Sentia-se relativamente bem.

Chegou ao trabalho no horário de sempre e fez as coisas de sempre. Ou quase. Resolveu ir almoçar com aos amigos, ao invés da solidão voluntária de suas refeições. Garantiria um velório com um pouco mais de gente. Riu nervoso ao pensar nisso. Puxou papo com o chefe na volta do almoço. Ele poderia mandar uma bela coroa de flores. Sempre quisera uma bela coroa enfeitando a porta da sala mortuária. No final do dia despediu-se amistosamente. Poderia ser a última vez.

Terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo. Os dias se repetiam. O baque vazio do metal no vazio também. A sorte sempre lhe sorria com um dia a mais. Até a morte estava tripudiando com seus desejos. Buscava aproveitar os dias, como um condenado em seus últimos instantes, mas o minuto final não chegava. Não iria romper o acordo. Trato é trato. Esperaria até o dia fatal.

Foi numa segunda, dia insuportável, que o chefe o chamou de canto. Teria que dar treinamento para uma nova funcionária. Menina recém contratada, boazinha, mas inexperiente. Um saco ter que aguentar essas funcionárias novas, mas o chefe dera a ordem e ordens se cumprem. Luana se apresentou simpática. Bonitinha, esforçada, fez o dia passar mais depressa. Passaram a almoçar juntos e ficavam juntos também durante o café. Com o tempo as pessoas começaram a brincar da constância da companhia dos dois. Não ligava. Luana tinha uma boa conversa. Luana tinha os olhos interessantes, um cabelo liso e cheiroso que dava vontade de tocar. Luana era uma pessoa com quem tinha vontade de estar. Passaram a se encontrar após o expediente. Primeiro com os colegas.  Depois começaram a sair só os dois, para poderem conversar melhor. Cinema, pizza, um beijo. Era estranho como se sentia bem ao lado de Luana. Aos poucos ela tornou-se indispensável. Tão fundamental na sua vida que o 32 foi esquecido embaixo da cama, onde era religiosamente guardado todos os dias. Era tão importante ter Luana por perto que a pediu em namoro numa noite de garoa fina, mesma noite em que se amaram, acima da caixinha que guardava a sorte.

A vida andava boa. Boa demais. Mas queria mais. Queria Luana todos os dias. Queria acordar e dormir com ela. Queria ter filhos, uns dois, um casalzinho pra encher a vida de esperança. Queria viajar com ela pra umas termas que tinha conhecido quando criança. Pediu que Luana fosse morar com ele. O apartamento era modesto, mas acolheria bem os dois nesse começo de vida a dois. Depois poderiam dar entrada em um outro maior que pudesse abrigar os filhos futuros. Luana concordou com um sorriso feliz.

As caixas com as coisas de Luana encheram a casa de uma bagunça gostosa. Nada da velha ordem tediosa de quem mora sozinho, nada de pia sem louça e banheiro sem cabelo. Mudaram as cortinas. Luana trouxe umas flores para alegrar o ambiente. Compraram umas almofadas e lençóis novos. A casa ganhara a vida que havia perdido há tempos.

Luana foi arrumar a cama para a primeira noite na casa nova. Sim, era uma casa nova para os dois. Esticou cuidadosamente os lençóis, dispôs as almofadas em cima da colcha nova. Encontrou a caixinha escondida e esquecida embaixo da cama. Pegou-a curiosa.

- O que é isso amor?

Quando viu a caixinha do revólver nas mãos de Luana empalideceu.  Ela teria que saber sua verdade.

- Posso ver?

E Luana abriu a caixinha, expondo o revólver brilhoso e seminovo.

- Pra que isso, amor?

Não havia motivos para mentir para Luana. Ela era o seu amor. Contou de seus dias tediosos. Contou como desistira da vida. Contou como a sorte o premiara com uma dia após o outro a cada baque de metal no vazio até encontrá-la naquela segunda- feira improvável. Contou que agora tudo mudara. Venderia a arma e conseguiriam um dinheiro para viajarem pras termas que tanto queria. Deveria render um bom dinheiro, nunca fora efetivamente usada. Luana riu.

- Você tá brincando, né?

Não, não estava. Ela havia mudado a vida dele. Ela havia dado a vida novamente a ele. Ela olhou enternecida para ele. Levou o revólver à têmpora, brincando.

- Então você é um homem de sorte!

Não, brinca assim, Luana, pediu. Arma é perigoso. Arma não é brinquedo. Ela deu um passo para trás. Ela olhou divertida para os olhos dele.

- Eu também sou uma mulher de sorte!

Luana riu. Luana continuou olhando para ele, com aquele sorriso que era o mais bonito do mundo.

- Bang!

Luana brincou. Luana puxou o gatilho olhando nos olhos dele. O estrondo do tiro encheu o ambiente. O cheiro de pólvora se espalhou no ar. O corpo de Luana caiu inerte no tapete da sala e o sangue vermelho vivo escorria aos borbotões. A sorte acabara.