12 de fevereiro de 2016

Meu coração é periferia

Os cientistas disseram, a certa altura da história da humanidade, que os sentimentos não são do coração e sim da cabeça, o cérebro os convoca. A gente aqui na periferia não acredita tanto assim nos cientistas, somos mais da vida do que do método, por isso, quando queremos falar que a Dona Ritinha é uma mulher generosa, caridosa, de muitos amigos, dizemos Dona Ritinha tem o coração grande.

Pois é preciso tamanho, espaço, para dar conta de tanto caos, fora e dentro da gente. Você observe as coisas por cá, são casas desiguais, ruas desiguais, pessoas desiguais, gente que crê no Satã e gente que crê em Deus. Mulher rezando para Santa Edwiges, no intuito de diminuir nossas dívidas financeiras; muitas vezes, a gente daqui já nasce devendo, umas dívidas que nem são tão nossas assim.

O restante da cidade morre de medo de pisar no nosso território, sendo o nosso território quase toda a cidade, e se funciona os shoppings, as plagas turísticas, tudo de luxo, ou o banal trânsito, funciona porque é nosso sangue fazendo girar a roda do cotidiano.

Não, senhores, não estou fazendo uma grande ode ao meu povo sofrido, minha gente humilde pintada nos filmes, nas canções, nos livros tão bonitinhos da gente rica, afinal meu povo fede e cheira, igual a todo o restante, a diferença é, não colocamos mais fedor ou mais cheiro, somos como somos, tão frágeis, vendados.

A cidade não nos pertence, tiram e botam quando e como querem, propriedade é uma mera ilusão nas nossas vidas, e mesmo assim somos iludidos a vida inteira no possuir. Minha mãe fala como uma reza, filho, tem que ter seu carro, seu apartamento. Preciso explicar para minha mãe que nunca seremos donos de nada. Nada. Pelo menos das coisas sólidas.

Levou um bocado de tempo para compreender essas coisas, afinal, o que faço a vida inteira? Ler os livros dos ricos, assistir ao filme dos ricos, vestir as roupas dos ricos, comer a comida dos ricos, ou melhor, a sobra de tudo isso dos ricos. Eles precisam, criam distinções, deles para conosco, entre nós. Eles precisam, em sua estratégia, nos fazer entender que de acordo com nosso merecimento existe o que deve morar na beirada,  e o que deve morar na rua do esgoto.

Sim, eu os odeio, apesar de a vida inteira ter sido ensinado a amar meus carrascos, a admirá-los, a almejar suas posições. Mas não quero aqui despojar as vestes dos bossais, eu estou aqui para falar do meu coração

O meu coração, uma periferia, todo entramelado de postes, meu coração sem arquitetura, meu coração cozido nas ruas, meu coração cheio de amor autêntico e de amizades improváveis, afinal, se é periférico, é pouco provável que consiga existir, e, caso consiga, respirar, caso respire, vingar, caso vingue, entender, caso entenda, amar o que se é. Os que entendem partem, fogem de si, para a possibilidade de compor um grande meio do quase, quase centro, quase periférico.

Meu coração não é quase, meu coração é derramado na existência que lhe fadaram, meu coração anda nas ruas, com medo de ser morto por seus iguais, meu coração acorda cedo, meu coração compra sapato novo no fim do ano, chama os amigos para comemorar a tão pouco comemorável existência.

Se nos fizeram existir assim desde sempre, nos dividiram para poder existirem, deixo registrado, não ficarei no meio, assumo meu partido, minha existência de ser eternamente um coração periférico,  cheio de mistérios e de falta de método, colorido, construído do jeito que dá, nunca pronto, nunca ponto.