25 de janeiro de 2016

ASPECTOS DA POESIA BRASILEIRA NA PÓS-MODERNIDADE

Meus livros são mais fortes do que eu, eles me escapam, me submetem à tradução. (Jacques Derrida)

Longe de mim os preconceitos loucos/ Que o vulgo segue de cerrados olhos [...] (Fagundes Varella)

 

A publicação recente do livro de poemas Desconstrução (Patuá, 2015), levou-me a um debate livre com os participantes dos lançamentos e os leitores desse livro.

Se hoje escrevo este ensaio, é porque sinto que há lacunas importantes na poesia atual, embora haja muito material de ótima qualidade sendo produzido.

Entre os bons autores estão nomes como Eucanaã Ferraz, Frederico Barbosa, Augusto de Campos, Arnaldo Antunes, Guilherme Gontijo Flores e muitos outros. Não pretendo, aqui, esgotar uma lista.

No entanto, o mal da poesia atual é o grande narcisismo estético que se propaga na chamada “metapoesia”. Acredito que escrever versos sobre versos, prática hoje corrente em demasia, especialmente entre os autores iniciantes, leva a um espelhamento inócuo e fragmentário. Deve-se isto, talvez, ao fato de vivermos um tempo de conflitos e tentativas de conciliação.

 

A pós modernidade

A pós-modernidade, tão bem analisada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro O mal-estar da pós-modernidade, que atualiza aspectos da então modernidade da época de Freud (O mal-estar na civilização foi publicado em 1930), cria indivíduos sufocados, em busca de um ar ralo, que é a necessidade de um quinhão maior de liberdade, ainda que isso custe algo mais de insegurança.

Diz o sociólogo na “Introdução” da referida obra a respeito da outra, freudiana: “Assim como ‘cultura’ ou ‘civilização’, modernidade é mais ou menos beleza (‘essa coisa inútil que esperamos ser valorizada pela civilização’), limpeza (‘a sujeira de qualquer espécie parece-nos incompatível com a civilização’) e ordem (‘Ordem é uma espécie de compulsão à repetição que, quando um regulamento foi definitivamente estabelecido, decide quando, onde e como uma coisa deve ser feita, de modo que em toda circunstância semelhante não haja hesitação ou indecisão’)”.

Já na pós-modernidade, essa “beleza” advém muito mais de liberdades conquistadas em detrimento da segurança descrita por Freud a respeito da modernidade dos anos 1920-1930. “Passados sessenta e cinco anos que O mal-estar na civilização foi escrito e publicado, a liberdade individual reina soberana” (grifo meu).

Esse traço fragmentário do ser plural, mas exigente do ponto de vista da liberdade, encontramos hoje em diversas manifestações: nas performances corporais que adquirem status de obras artísticas e são enviadas do mundo inteiro por militantes queer à filósofa norte-americana Judith Butler (e no Brasil, vide as apresentações do Teatro Oficina e a recente apresentação de “Macaquinhos” em uma unidade do Sesc), além de um grupo de estudantes que fazem uma performance em que se costura literalmente uma vagina; nos defensores das quedas das fronteiras em iminência, devido à globalização; e também nos defensores de uma vida mais natural, sejam vegetarianos, veganos ou simplesmente defensores de uma natureza mais bem preservada. Esse traço, dizia eu, ainda está ausente da maioria da literatura poética nacional.

 

Derrida e o coração por desconstruir

O azulejo torto que incomodou o filósofo francês Jacques Derrida, morto há dez anos, em sua infância, foi o que o impulsionou a desenvolver o princípio de “desconstrução” (termo que surge primeiramente com Husserl), é o mesmo que me levou a debater essas importantes questões nos encontros com nossos leitores. Afinal, todos temos um azulejo ou uma pedra mal colocada em nossas casas.

Ora, a desconstrução na arte se dá pelo menos de dois modos: uma crítica nunca é única, e sim plural, na visão de Derrida, e, além disso, um texto, seja ele literário ou filosófico, jamais deve ser confinado. Por isso, o autor é livre (voltando à questão da característica pós-moderna predominante). Mas parece não estar usufruindo dessa liberdade.

Mas importante é que se faça arte, como disse Derrida, “com o coração”. A propósito disso, o poeta e estudioso brasileiro Marcos Siscar escreve: “Como ter leveza ao falar do coração dentro de uma cultura que se autodefine e se autocensura como uma cultura da cordialidade? Como nomear o outro dentro de si mesmo, nomear-se outro dentro de si mesmo?” E em seguida: “Uma vez que o coração está na origem, começo por voltar a ele. Mas na direção dele o caminho não é tranquilo”.

 

Estética literária

Pensando nessas questões, faz-se mister uma reflexão sobre a poesia hoje: em termos de forma, vemos um excesso visual, seja de reticências, parênteses (que mesmo não se fecham, como no caso de Fabiano Calixto), colchetes, barras. A poesia concreta se beneficia disso e de forma que o resultado seja de fato apropriado, mas, para além da poesia concreta, isso semelha um pouco o excesso das grandes metrópoles. E as grandes metrópoles continuam sendo tema de poesia, como em Ademir Assunção (Pig Brother), que, aliás, sabe escrever metáforas inteligentes e inusitadas. O problema disso é que, desde os modernistas, como Mário de Andrade (“São Paulo, comoção de minha vida!”), trata-se muito das grandes metrópoles.

Não há mal nisso tudo, mas devemos pensar: que tal desconstruir? Desconstruir para construir de novo, do mesmo jeito ou de outro?

 

Identidade cultural e minorias

Para quebrar o paradigma dos excessos na forma e da metapoesia no tema, devemos ter em mente que é preciso estarmos sintonizados com o mundo à nossa volta. O teórico e sociólogo jamaicano Stuart Hall analisa em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade: “A questão da ‘identidade’ está sendo extensamente discutida na teoria social”, e que a identidade do Iluminismo (1), do sujeito sociológico (2) e do sujeito pós-moderno (3) são etapas que não devem ser ignoradas.” Enquanto o sujeito do Iluminismo era bastante individualista e heteronormativo, o do sociológico já refletia a crescente complexidade no mundo moderno. O pós-moderno, no entanto, ainda segundo Hall, não tem “uma identidade fixa, essencial ou permanente”. Ou seja, estamos vivendo uma verdadeira Babel globalizada, sem perspectiva da antiga ordem da modernidade.

Já mencionamos as teorias queer (e a questão do papel da mulher na sociedade também está nelas) e acrescentamos, aqui, as minorias em geral, sejam étnicas ou econômicas, religiosas ou políticas (leia-se Orikis, livro de poemas de Claudio Daniel). A questão LGBT e as teorias queer nos remetem à questão do desejo, e este deve ser o grande tema da poesia pós-moderna: o desejo por si mesmo, na busca de um prazer muito particular (propriedade do indivíduo com todas as limitações do tempo presente); o desejo pelo outro (alteridade do desejo). Por isso advogo o florescimento de uma poesia erótica e/ou pornográfica. Recentemente, veio a lume o livro “Antologia da poesia erótica brasileira”, o que vem ao encontro do que explicito aqui.

Em 2015, o casamento gay foi aprovado em todos os Estados Unidos da América, o que gerou uma onda de aprovação nas redes sociais. Isso, além do repúdio à bancada evangélica brasileira e sua política contra a família plural manifestada nas mesmas redes demonstram que a questão do desejo é um grande tema. A heteronormatividade cai por terra.

O autor da Patuá e professor universitário Paulo Andrade publicou, em 2014, o livro Corpo arquivo. Do ponto de vista do que propomos, ele está sintonizado com essa questão do desejo e da alteridade do desejo. Infelizmente, não se destacou em nenhum prêmio, talvez pela complexidade dos seus poemas. Outra artista da mesma editora fez um processo semelhante e foi mais bem-sucedida: Suzanna Busato, com seu livro Corpos em Cena, também da Patuá, foi finalista do Jabuti 2014.

 

Questões da natureza

Um outro tema que não se deve deixar passar em branco é o da natureza. A nova onda de haicaísmo é um sinal de vitalidade dessa demanda, embora os haicais brasileiros atuais sigam uma linha mais divertida, quase humorística, em detrimento da contemplação da natureza preconizada pelo mestre Bashô. Entretanto, muitos resistem.

A natureza sempre foi tema da poesia, desde tempos imemoriais. Porém, a cada escola, a sua abordagem foi se modificando, e já chega o momento de mais uma virada: o planeta pede socorro, e para ontem! Escrever a natureza de maneira afinada com as novas demandas que urgem no nosso tempo é também urgente. Em Paris, dezembro de 2015, os países emitentes de gases poluidores se encontraram para tentar, mais uma vez, criar um documento internacional que obrigasse os governos a criar práticas sustentáveis de produção e redução do aquecimento global. Apesar de todo esse clamor público sobre as questões da natureza, a impressão que temos é que pouco se percebeu isso na poesia pós-moderna. E retrato-me aqui se me esqueci de mencionar algum poeta que tenha feito esse trabalho, que certamente será lúdico e prazeroso, tanto para o autor quanto para o leitor.

Pode ser lúdico e prazeroso reconstruir o desconstruído porque jamais se fará panfleto na poesia, note-se isso! Esse é um risco de escrever uma poesia sem nenhum valor estético. O que propomos é que a sensibilidade individual crie formas e valores a serem poetizados sem a tentativa do convencimento do leitor. Isso é vital, e percebemos, na escola do Naturalismo, por exemplo, o quanto é complicado fazer uma arte literária “engajada”; e embora se diga atualmente que, na prosa, estamos vivendo uma escola “neorrealista” e “neonaturalista” (do que discordo em parte), na poesia ainda estamos escrevendo nosso movimento estético, e essa escrita é um palimpsesto cheio de ruídos.

Hoje em dia, o homem e a mulher têm pouco tempo para si, para seus filhos e seus animais. A exploração capitalista continua, e o espaço da arte está cada vez mais confinado. No caso da poesia, ela tem urgência em se reinventar, para não correr o risco de ter ainda menos leitores do que os que já tem. Por isso, celebro desde já o fim da metapoesia, ou, pelo menos, da metapoesia vulgar, fácil demais, vaidosa e arrogante!

Sobre o livro de poemas Desconstrução, não trata, ainda, de nenhum dos temas propostos. Ele é uma etapa. Nele, foram desconstruídos sintaticamente os poemas, levando-os ao grau zero de escrita (Roland Barthes), para depois reconstruí-los. Como bem disseram leitores que participaram de um dos lançamentos, as reconstruções podem ser feitas de diversas formas, ad infinitum. É um jogo, mas é também a desconstrução de Derrida. É uma semente para uma poesia da pós-modernidade. A pós-modernidade é um desafio, mas é o tempo em que vivemos. Por isso celebro a pós-modernidade e a prática da desconstrução artística.

 

 

Vivian de Moraes é escritora, com três livros de poesia lançados de forma independente, com tiragem de 200 cada, entre 2012 e 2013, rapidamente esgotados. São eles: “Sonetos Sombrios”, “Poemas e Canções” e “haicais/ vivian/ de moraes”. Publicou recentemente seu quarto livro, “As sete cores do carneiro”, de prosa, também de forma independente, pela Editora Costelas Felinas, com tiragem de cem unidades, igualmente esgotadas. O quinto livro, “Desconstrução”, acaba de ser lançado pela Patuá. Jornalista não atuante, mantém-se em forma escrevendo resenhas de livros da Editora Patuá no blog amuletospatua.blogspot.com, outro com dicas de leitura (papeis agranel.blogspot.com), além de manter seu blog pessoal (viviandemoraes.blogspot.com).

A autora já foi publicada por revistas como Cult, Zunái, Samizdat, Mallarmargens, Pacheco, Gente de Palavra, Bar do Escritor e Cabeça Ativa.

 

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Paulo. Corpo Arquivo. São Paulo: Patuá, 2014.

ASSUNÇÃO, Ademir. Pig Brother. São Paulo: Patuá, 2015.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Mauro Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Jahar Editor, 1998.

BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. São Paulo: Cultrix, 1971

BUSATO, Susanna. Corpos em Cena. São Paulo: Patuá, 2013.

CALIXTO, Fabiano. Música Possível. São Paulo: 7 Lettras/ Cosac Naïf, 2006.

DANIEL, Cláudio. Orikis. São Paulo: Patuá, 2015.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Thomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina, 2014.

MORAES, Eliane Robert (Org.). Antologia da poesia erótica brasileira. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2015.

MORAES, Vivian de. Desconstrução. São Paulo: Patuá, 2015.

SISCAR, Marcos. O coração transtornado. In: Jacques Derrida: Pensar a desconstrução. São Paulo: Estação Liberdade, 2005.