11 de novembro de 2015

Párias, peões

Andavam nus pelos grandes campos de cana-de-açúcar. Sem rumo. Andavam nus sob o sol eterno daquele verão dos infernos. Os pés roçavam toda a palha seca, martirizavam-se nos tocos queimados da grande última limpa daquele terreno. Grandes folhas cruéis iam rasgando e espancando os seus rostos já muito flagelados pela fome, pela sede, pelo punho duro da dita dolente que agora os encaminhavam para a última guilhotina. Andavam nus. Braços amarrados para frente, no ventre. Peles morenas, brancas, negras; peles marcadas pelo chicote do cativeiro; benditas peles marcadas pelo doce desejo da liberdade, ainda na dose quente, na aguardente do mal-me-quer dos dirigentes. Andavam nus. Párias, sim. O sol castigava o topo da cabeça, o lombo enegrecido e inflamado. Homens, eles pintados na cor vermelha de seu sangue e mulheres que carregam no ventre o fruto do escárnio e da morte, frutos que não nascerão. As pastagens morriam ao longe, sobre a colina que dava para a estrada de terra perdida ao fim das veredas mais antigas entrecruzadas de mitos e assombros. Destas veredas, existe o fatídico rancor de outros passos nus que nunca voltaram a sentir o mato queimado roçando, asperamente, a planta do pé e nem o fustigar de chicote das plantas urticantes da cana-de-açúcar. Almas ainda perambulam nuas por estes caminhos perdidos do interior. Chegam a clareira, findando o caminho torto entre o canavial. Nada de água, sentam-se, obedecem ainda, mesmo próximos do fim. Afinal, para quê lutar? A luta inteira se perdeu, se mistificou ali, naquela estrada próxima ao antigo povoado. A luta inteira que levou a vida de duas almas que, com a sorte dos deuses, não terminaram com as costas lascadas na pele e no osso, restando somente estes próximos à gólgota. Foram ali enfileirados, nus, com as cabeças abaixadas entre os joelhos. Sentiam o cheiro pútrido do banho que nunca tiveram até ali. Presos, pela eternidade, na incerteza de caminhos que não tinham volta. Numa esperança reconfortante, escreviam os nomes de quem amavam na terra solta daquela clareira. Com a dificuldade de estigmas, as mãos amarradas tentavam escrever as vogais e consoantes num torpe desejo que a brisa levasse aquela areia nominada para o colo das marias, josés, franciscos e raimundas. Areias que não falariam da vida depois da clareira, mas de antes, nas memórias sempre buscadas, no âmbito do tempo, que colocam os inertes prisioneiros num limbo seguro das tribulações daqueles anos de chumbo. Lágrimas doídas umedecem o recado deixado na eternidade das areias enquanto eram erguidos abruptamente para continuar a marcha rumo a outra vida. Um marchar solene, triste, perdido que continuava com aqueles que andavam nus.

Na ponta extrema da estrada, caminhavam vestidos, ainda que suas roupas fossem rotas, rasgadas, manchadas do suor do dia a dia. Traziam cabaças de água a tiracolo, chapéus de palha pretos da poeira dos campos, patuás com preás mortos pelos tempos e caminhos por onde trabalhavam e no ombro, a foice, a enxada, a socadeira de caçar avoante. As sandálias eram parcas, de couro barato retirado das reses que tinham e vendiam nos tempos da seca. Elas morrem para dar a carne e as sandálias que agora pisam sem medo a roça ardida. Vão em silêncio e cabeças baixas, mas as mãos livres e calejadas do trabalho deposto da roça alheia. A diária suada embebida no sol ardente ainda gritante de brilho naquele céu lindo e agourento dos meses quentes. Atrás deles, vinha em grande cavalo branco brandindo a autoridade, o chefe das terras, coronel pagão que mandava na lei da sua pena. Galopava ecoando a autoridade sem abrir a boca, calando as vozes da terra quente que ali abrigava os eternos sofridos da imensidão. Vinha a romaria das roças, em passos lentos de quem descansa no caminhar do dia abrasador que ainda não terminara.

No calar dos ventos, as tropas se encontravam.

Eles, nus; eles, vestidos. Os caminhos contrários que destinavam rumos tão diferentes quando os sentidos. Olhavam-se, como se quisessem se reconhecer na íris sofrida do outro. O paralelo da estrada, no lado mais estreito. Aqueles roçavam a canela nas urticantes da beira da estrada; estes, vestidos contra o sol, carrapicho, urtiga, não sentiam o roçar da planta na sua pele. Não sofriam? Ah, a sua moda! Sofriam no pingo do meio-dia. Sofriam no olhar com a tropa nua que lhes encarava como se dissesse no fundo da alma o quanto sentiam. Párias. Peões. No mesmo caminho, mas no sentido oposto? Quem vai, quem fica? Foram alguns minutos de um imenso reflexo. Os caminhos pedem passos. Seguem.

Aos joelhos, cai o que seguia atrás do comboio dos nus. Um chicote ecoou pelo silêncio das matas secas e tristes dos dias da estiagem. Um chicote que bradava a autoridade do braço verde, de um cavaleiro da morte. O chicote que desmanchou a pele que tocou, aquele rasgo que virou vermelho e que depois aflorou a alma sofrida de quem pede pela morte. A boca salivava, pedia algo, pedia qualquer coisa, deixa a saliva beijar a terra como uma oferenda do fraco; as mãos sobre as coxas, a posição que implora enquanto o chicote dominava os ventos a sua frente. Os verbos podres dos domadores da morte não ganhavam do silêncio e solidão daquele nu ajoelhado na terra quente do fim do mundo. Mas o chicote não chegou à pele mortificada; veio a água fresca de uma cabaça despejada constante contra uma boca mendicante. Bebeu, animalesco, quase não desperdiçando nenhuma gota. A água escorria por entre os lábios, caía na terra levantando uma poeira tímida e sensível. O tempo ficou lento, deixou quase de existir até o estalar daquele chicote. Aquele nu se curvou pressentindo a dor e o sangue que jorraria. Mas, não: a cabaça caiu e deixou derramar os restos de água, as mãos ao rosto acumulavam a lágrima dolorida. Mãos na terra, outro bradar do chicote na pele. Vinha da mão dourada, autoritária, do senhor das terras. O peão levantou-se, deixou cair a réstia de terra entre os dedos. Fardados aplaudiam o gesto icônico do chefe das terras e prosseguiam aos gritos, como um ladrar de cães, para a sua tropa de nus seguisse o caminho. Seguiram, no silêncio das matas. Os passos do contrário, daqueles vestidos, rumavam às casas, aos restos do dia, à certeza mendiga sob o chicote do chefe; aqueles, nus, rumavam aos desconhecidos, aos restos da vida, na incerteza imperante sob o chicote do poder. Nunca mais a íris da febre e do calor se encontrariam. Restariam ao pó e a água derramada, as lembranças dos párias e dos peões.

 

Valdemar Neto Terceiro é autor do livro "Romãzeira das fábulas", publicado em 2015 pela Editora Substãnsia