5 de outubro de 2015

Um estado inicial: rarefeito

Quando um escritor resolve criar uma obra, seja ela poética ou não, tende a ler e reler o que criou, a preocupar-se com a estruturação das coisas que diz ou que alinha nas frases que acabam por fazer surgir, ao final, uma obra literária. Contudo, isso leva tempo, e o tempo, como tudo na vida, possui várias interpretações.

Esperar muitos anos para se publicar o primeiro livro pode ser algo que acabe sendo fortuito, dando tempo ao criador de repensar sua obra e de acabar por escolher os seus melhores “momentos” para trazer à tona ao leitor. Contudo, o tempo, também, pode acabar prejudicando o que foi escrito, uma vez que pode vir a ficar descontextualizado e não sendo mais importante para aquele determinado momento histórico.

Mas, se o assunto for poesia, talvez isso não atrapalhe em demasia. Sendo assim, é interessante perceber os dois lados da moeda, ou do tempo, no livro de estreia de William Soares dos Santos, intitulado rarefeito, publicado pela editora Ibis Libris.

A obra traz consigo poemas que foram escritos desde 1990 pelo professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Sendo, portanto, 24 anos de criação poética; a espera, diz o autor em entrevista, ocorreu por não conseguir ser aceito por alguma editora que quisesse apostar em sua obra. Mas, tendo sido aceito, o momento de escolher quais poemas viriam a entrar ou não em rarefeito havia chegado.rarefeito

O livro, que tem o indicativo de “poemas reunidos (1990-2014), é dividido em seis partes. Em todas elas é possível ‘escutar’ um “eu” que, aparentemente, está perdido e que não consegue se enxergar, e, em alguns momentos, nem a se sentir. De acordo com Antonio Carlos Secchin, isso ocorre porque “o poeta, de algum modo, abdica da plena posse de si”, como aponta no prefácio do livro.

Contudo, esse “eu”, sendo apenas quase, não o sendo por inteiro, acaba por não me agradar durante a obra por possibilitar certas repetições de temas. Falar de sentimentos que envolvem a perda, o desamparo, o amor, a solidão é algo que, mesmo para um poeta experiente, como William Soares, pode ser algo complicado. Mas, se pararmos para pensar, esse ‘desajuste’ possa ocorrer justamente porque o “eu” que nos diz algo não o é no todo, apenas em parte.

Assim, os momentos que possuem certa potência são aqueles em que há uma certa fuga deste constante ser que aparece, quase sempre, nos poemas. Exemplo disso é a antepenúltima parte do livro, chamada de Dois poemas do manuscrito Shakespeare, quando escreve os dois poemas “king lear” e “cornélia”.

o que dizer em hora já tão avançada?

onde do teu coração a morada?

como falar do humano

se mal me reconheço na perfeição do espelho de prata?

[...]

o que me devora é o que sai de mim mesmo:

prole, velhice e vaidade,

cegueira, realiza e ingenuidade.

não existe tempo

que o humano engenho possa inventar que

meça a tempestade necessária

para purificar a alma do dragão.

e a minha então?

Ou quando escreve a maioria dos poemas inseridos na terceira parte, intitulada de Seis poemas da distância, que parecem ter sido escritos entre os anos de (1992-1999). Em contraste a isso, o poeta quando fala dos girassóis ou do físico, por exemplo, ainda assim está a falar de si, mas buscando um certo distanciamento, como pode-se observar no poema o que fazer?

o que fazer comigo mesmo?

com esta inquietude

constante e com o desejo

de ser muitos?

Há, portanto, uma problemática que está ligada, intimamente, à sua existência, que pelo teor dos poemas, podemos dizer humana. Esse é um outro ponto alto do livro, porque por mais que o poeta peque deixando à mostra certa possibilidade de autobiografia, o que se insere é uma preocupação universal do homem, de tentar se entender no mundo que não possui respeito nem clarividência para nos possibilitar uma escapatória dos momentos de solidão.

tudo indica que o meu

caminho mais longo

será mesmo a solidão.

Parece, assim, que todo o livro é uma maneira de se salvar, mesmo que os deuses não o ajude, mesmo que o tempo não contribua, mesmo que se veja presente em muitos e em outros, o “eu”, que, em algum instante, precisa se sentir como um ser unitário para poder desvendar a si mesmo, não consegue fugir de sua fragmentação, sendo quase um ser rarefeito.

williamsoares-divulgacao

A obra de William Soares dos Santos pode ser uma justa representação daquele escritor que, durante muito tempo, espera para vir a público. Sem saber como se fazer presente, como se firmar mediante a tantas incertezas de um mercado, cada vez mais, consumista, o tempo de escrita acaba por não contribuir diretamente na estruturação da obra. Contudo, as partes dos manuscritos, que parecem estar presentes em livros vindouros deixam uma mostra especial do que o autor tem a dizer ainda. Essa rarefação presente no livro pode ser justamente a representação inicial de uma obra perene e que, tendo esperado 24 anos para surgir, talvez, seja apenas a ponta do iceberg.