28 de setembro de 2015

Uma novela de fôlego

"Este foi de fato o único ensinamento contundente que meu pai me deixou. Ao menos o único intencional, que ele quis que eu aprendesse. Os outros, os que eu aprendi com o seu contraexemplo, esses, só agora, com o tempo, eu assimilo: vendo meu pai se embebedando, aprendi a não beber; sabendo das mentiras dele, tento não mentir; lembrando-me do jeito complicado com que ele me criou, esforço-me para criar meu filho de outra maneira."

Essa é uma das memórias que Mateus, irmão de Manuela, tem de seu pai. Encanador por destino da ocasião, Jaime era um simples, mas, aparentemente, com dificuldades de estar no mundo. E essa sua dificuldade parece ser algo que está presente em toda a novela “Fôlego”, de Rafael Mendes, publicada pela Confraria do vento.

A história de Mateus e Manuela é muito bem estruturada e muito bem elaborada. Desde o início, o autor consegue intercalar dois momentos no tempo através de técnicas, aparentemente simples, para falar do casal de irmãos, filhos de Jaime e Cecília, e da relação à distância de Manuela e de Pedro.

Num primeiro instante, temos a fala de Manuela, que através de e-mails questiona e tenta manter contato com seu irmão por parte de pai, Pedro. Enquanto isso, temos a voz de Mateus narrando toda a sua história e de sua família. Parece-nos, contudo, que quem realiza a leitura é Pedro, uma vez que Manuela enviou para ele um possível livro escrito por Mateus.

Assim, ao longo da narrativa, temos a família atuando como protagonista, tendo como vozes principais o casal de irmãos, Manuela e Mateus; Pedro não tem a oportunidade de falar em toda a história. E não fala quando tem a oportunidade, não faz questão de conhecer os irmãos quando seu pai morre e desaparece em meio à chuva e ao sofrimento de todos.

Desta forma, o personagem que conduz a narrativa é Mateus, é ele o maior responsável por nos conduzir pela angustiante e depressiva história de uma família que, parece, ter o seu destino fadado ao colapso desde o início. Vamos conhecendo a história da família através das lembranças de Mateus, que acabam por mostrar Jaime, seu pai, como um homem simples, mas de difícil compreensão. Parece existir no encanador uma dificuldade de estar no mundo, mesmo que não tenha problemas em estar em dois lugares distintos, inventando histórias e criando duas famílias ao mesmo tempo.

Sem título-1

Com o tempo, percebemos que essa dificuldade não é apenas sua, mas de Cecília, sua mulher, que acaba por se entregar à Palavra Divina, buscando na religião consolo para as agruras de sua vida, que, mesmo parecendo, não se iniciaram em sua juventude, quando engravidara do jovem Jaime. Poder-se-ia falar que Cecília já sabe de todos os movimentos de seu marido, uma vez que ao sair para pescar viaja para longe e demora muito tempo para voltar, muitas vezes muito mais solitário.

São poucos os pontos até aqui apresentados para tentar realizar um cenário do que ocorrer com esses personagens, que são, ao meu entender, muito frágeis. Se resolvêssemos analisar superficialmente Manuela, por exemplo, tentaríamos buscar a solução dos seus problemas na dificuldade em que os jovens possuem ao lidar com a adolescência. Contudo, conhecendo Manuela, vendo que será expulsa de casa por não respeitar sua mãe, que se descobrirá lésbica, entendendo, portanto, a história que circunda a toda a família, vista pela casa da frente, onde mora a avô Rute, será possível perceber, minimamente, que o problema é muito mais complexo e profundo do que aparentemente o leitor pode achar.

Em toda a novela, temos personagens fragmentados, talvez não seja essa a melhor palavra para nomeá-los, mas todos possuem consigo problemas interiores que acabam por transbordar o ser, a sua maneira de estar perante o mundo. Mateus, o narrador, é o que mais finge, assim como seu pai. É o que consegue, ainda, viver durante muito tempo sem agir como se os problemas ao seu redor não fossem de sua responsabilidade.

"Eu não me preocupava com nada além das minhas ambições, dos meus projetos. Eu haveria de casar, de comprar o meu apartamento, de ser promovido em meu emprego, de ser rico ou, se não rico, estável. Eu haveria de deslembrar a morte de meu pai. E como eu conquistasse essas metas que me impunha sucessivamente, não pensava de modo algum na Mana, tampouco em minha mãe, na vó Rute ou em Deus. Talvez o que eu quisesse mesmo era me libertar daquela casa, da nossa história, daquele claustro. Quase tudo eu consegui, as coisas mais fáceis eu consegui; foi só uma questão de tempo."

Cria ele que tudo seria uma questão de tempo, mas isso não é o bastante para mantê-lo na linha. A sua solidão, presente desde a ausência de afago do pai ou da mãe, a distância que cria de sua irmã, que antes era a única com quem conversava um pouco antes de dormir, se fizeram presente durante toda a sua vida, sendo inevitável que sua dor não se exteriorizasse. E diante dessa dor profunda, que acaba nos levando a uma depressão profunda, Mateus viveu seus dias tentando ser o que seu pai não o fora. Buscou na escrita a maneira de relacionar com seus problemas, relatando todas as suas memórias, o que, em sua mente, poderia ser o seu livro, que viria a publicar se não fosse o seu fim.

"Mesmo assim eu estudava, tentava estudar. Levava a sério aquilo que meu pai havia me pedido, marretando uma parede, quando eu era menino: estudava sem parar. Queria ser alguém, como ele queria que eu fosse. Hoje, se houvesse possibilidade, perguntaria a meu pai o que é, afinal, ser alguém. Além do diploma pendurado na parede do meu escritório, do apartamento espaçoso e da família formada, o que mais me constitui como alguém."

Assim, gostaria de imaginar, pensou Manuela, daí a importância de seus e-mails, que entrecortam os capítulos da narrativa de Mateus, enviados a Pedro. Ela busca, nesse irmão distante, encontrar uma maneira de se relacionar com seus problemas. O livro de Mateus vem a ser o catalisador para que ela consiga se aproximar do irmão. Por isso ela lhe envia o livro, pois deseja, talvez, que aquele dia, no cemitério volte, e que Pedro possa se apresentar, possa dizer o quanto sente muito por não terem se conhecido antes ou que, mesmo naquelas circunstâncias, estava feliz em conhecê-la e a Mateus.

retirado da página do Jornal Opção

Lendo a novela de Rafael Mendes me questiono onde o autor haveria errado. Alfredo Monte, em seu blog, comenta que o ponto fraco reside na falta de confiança no leitor, pois cita que o autor da novela teria, em alguns momentos, tentado impor um discurso quase didático, como afirma Monte. Contudo, acredito que essa desconfiança possa estar ligada também à ingenuidade de Mateus ao escrever suas próprias memórias. Não sendo ele um autor experiente, isso acabaria por aparecer na narrativa.

Assim, a novela "Fôlego", de Rafael Mendes, é uma das melhores obras que pude ler este ano. Uma leitura rápida, mas profunda, que pode nos atingir sagazmente se não tivermos a maioria de nossos problemas resolvidos. É uma novela que pretende nos colocar em uma posição de confronto e de entendimento perante o próximo, tentando buscar, ao nosso redor, onde estão essas vítimas da vida, que sorriem, se forma, criam filhos e depois desistem, faltando-lhes fôlego para continuar, não é à toa que Mateus sofria de asma, parece que o autor quis “brincar” com essa representação.