7 de setembro de 2015

O caminho estreito para os confins do norte, de Richard Flanagan

O que somos? O que realmente somos? Essa é uma pergunta que me faço muitas vezes e acredito que ainda a farei durante muito tempo. Sempre tenho a impressão de que ela já se tornara idiota, mesmo que uma possível resposta esteja repleta de um conhecimento amplo e complexo que não poderá nunca nos satisfazer.

A verdade é que a grande literatura é aquela que tenta, de certa maneira, colocar esse tipo de dilema em sua construção. São poucos os autores que buscam criar uma reflexão sobre o momento em que vivemos ou sobre a condição humana. Se formos realizar uma breve análise, poderemos observar que os livros considerados clássicos, em sua maioria, são aqueles que tocam nestes pontos, fazendo assim que a sociedade se veja ali refletida.

Acredito que um bom exemplo de livro que pode se tornar um clássico é o novo romance O caminho estreito para os confins do norte, do escritor australiano Richard Flanagan, publicado pela Biblioteca Azul. O livro que leva o nome de um poema do poeta Bashô,  traz em sua estrutura eficaz e potente não só um personagem complexo, mas nos propicia uma discussão sobre alguns temas que sempre serão caros à humanidade, como o amor, a esperança, a morte e, principalmente o ser humano.

Em princípio, podemos dizer que a obra vai narrar a vida de Dorrigo Evans, médico tasmaniano, oficial do exército australiano, que acaba sendo aprisionado pelos japoneses na Segunda Guerra Mundial. A vai ser contada em tempos cronológicos diferentes, contando a história de Dorrigo antes de ir à guerra, durante e depois dela.

Contudo, não acredito que o interessante seja saber como Dorrigo Evans se envolveu com Ella, moça com a qual ficara noivo antes de partir para a guerra; ou como se deu sua relação amorosa com Amy, onde é possível ver a ingenuidade do personagem e suas dúvidas frente ao amor, uma vez que preferia estar com Amy nos feriados ao invés de Ella. Neste ponto, já se pode começar a delinear certo caráter do personagem que será foco em toda a obra. Obviamente que estes pontos não podem ser desconsiderados, mas, tendo o autor passado doze anos de sua vida escrevendo esse romance, quero acreditar que algo mais profundo está presente entre as mortes em meio à merda, às chicotadas e à cólera que ocorreram na guerra, e entre a maneira de viver de Dorrigo Evans após ter voltado da guerra.

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Ele engoliu em seco de novo; sua boca se encheu novamente de saliva. Ele não pensou em si como um homem forte que sabia que era forte – um homem forte como Rexroth. Rexroth, pensou Dorrigo Evans, era um homem que teria comido o bife por seu direito e, depois, palitaria alegremente os dentes de salteador diante de seus homens famintos. Dorrigo Evans, por sua vez, via-se como um homem fraco sem direito a nada, um homem fraco a quem os mil estavam dando a forma de um homem forte a partir de suas expectativas sobre ele. Era um contrassenso. Eles eram cativos dos japoneses e ele era prisioneiro de suas esperanças.

Por trás da vida de Evans, há um plano de fundo que mostra a que ponto a miséria humana pode nos levar. A guerra sempre será necessária para a paz, é o que alguns podem afirmar, contudo, na obra de Flanagan, é possível observar que este sentimento que pode nos elevar não se fazia presente enquanto os japoneses tentavam criar o que viria a ser a chamada Ferrovia da Morte, uma obra que os ingleses não criam ser possível de ser realizada nem em quinze anos. Porém, o Império Japonês, propondo ligar a Tailândia até a Birmânia, para que assim fosse possível dar suporte as suas tropas durante a Segunda Guerra Mundial, levou quase que trezentos mil homens a trabalharem sobre um trabalho forçado para conseguir realizar tal empreitada. Entre eles, cerca de cem mil prisioneiros faziam parte do exército aliado, dos quais quase três mil australianos vieram a morrer.

Entre a floresta e os oficiais japoneses, os presos tinham que lidar com todas as agruras que um ser humano poderia vir a sofrer, desde fome até à morte por asfixia em, literalmente, um poço de merda. Darky Gardiner foi um desses mortos, que por não ter mais forças devido ao trabalho escravo ao qual era submetido, levou uma surra durante incontáveis horas perante o pelotão de presos, que nada podia fazer a não ser pensar em outras coisas para não ver o que acontecia em sua frente. Mesmo assim, e ainda atacado pela cólera, Gardiner conseguiu se manter “em pé” por muito tempo. Ninguém poderia lhe ajudar senão sofreria o mesmo castigo. Centenas de homens desarmados eram obrigados a ver um homem, em sua total humilhação humana, apanhar de três homens aramados sob os comandos dos oficiais japoneses. Seu fim, após não saber mais se vivia ou se sonhava, foi a morte por asfixia num poço de merda, ele não teria sido capaz de se sustentar de cócoras enquanto tentava fazer suas próprias necessidades.

Uma exaustão terrível o acometeu, seu ânus ardia como fogo, sua cabeça girava furiosamente, e tudo que ele queria era deitar-se na lama e na merda e dormir para sempre. Mas lutou contra esse sentimento porque seu estômago estava novamente apertando como um garrote, e sentiu mais uma vez a explosão de um jorro malcheiroso. O esforço o deixara ofegante; tendo se esvaziado por completo, seu intestino pareceu se encher imediatamente de novo.

Dorrigo Evans - sendo o oficial australiano responsável por manter os prisioneiros australianos na linha, e fazer com que a ferrovia estivesse pronta no tempo determinado, pois ele está sob as ordens do Império Japonês e ele não pode desapontar o Imperador, mesmo sendo ele um prisioneiro - não é o herói da história. Não é esse o intuito de Flanagan. Seu objetivo também não é mostrar o dia a dia do que ocorreu naquele campo de prisioneiros. Ao contrário do que podemos pensar, Dorrigo Evans não é o ponto principal da narrativa. É óbvio que precisamos de uma voz que nos relate todos os acontecimentos circunscritos à volta da vida de Evans, mas, mais do que isso, temos a possibilidade de ver como um ser humano se desenvolve durante os anos duros de uma guerra, vivificando os sentimentos e guardando-os para viver de uma maneira que não gostaria de viver. O principal aqui é a condição humana pelas quais todos os personagens se submetem, sejam eles sob trabalhos forçados ou pela submissão de sofrer com o amor.

É verdade que a voz de Evans é aquela que tem maior força perante a estrutura literária que Flanagan constrói, mas personagens como Nakamura, Kota, Lagartão e Darky Gardiner são essenciais para que a obra possa se colocar entre as grandes narrativas. A última parte do livro - na qual o irmão de Dorrigo surge, trazendo consigo um ataque cardíaco, fazendo que o médico condecorado pelo governo mude os rumos das viagens de férias com a família durante dois dias - muda significativamente o tom da narrativa e evidencia que há um quebra-cabeça desconhecido pelos leitores.

Num clímax desenvolvido com a ‘perfeição’ e delicadeza de um haiku, Flanagan propõe uma obra realmente eficaz para que ainda possamos olhar para o nosso íntimo e acreditar que a literatura contemporânea não está morta.

Assim, Dorrigo Evans é, ao lado de um dos coronéis japoneses, Nakamura, o que mais evidencia como podemos sofrer com um sentimento que pode nos acompanhar durante muito tempo e que não nos trará, talvez, nenhuma ‘recompensa’. Aos que acreditam que o autor busca evidenciar as desastrosas ações que os japoneses realizaram, mostrando como os prisioneiros sofriam, devem tentar compreender que o amor, presente durante toda a obra é um dos pontos altos entre as indefinições amorosas de Dorrigo Evans e Segunda Guerra Mundial.

Não falo aqui dos romances que envolvem a narrativa, mas do sentimento em si que nos faz ter esperança sempre. Assim, quando Evans tem a notícia que sua família está a perigo devido ao fogo que cresce absurdamente ligeiro, ele não pensa duas vezes, corre para salvá-los, mas isso não vai nos mostrar que o personagem é um herói. Ele não deseja isso, ele nunca desejou isso e fácil apreendermos isso, pois o próprio Evans não entende porque a sociedade o eleva de maneira magnânima. Quanto mais ele não faz questão que nada ocorra, mais ele consegue ficar famoso pela sua desenvoltura na medicina, após voltar da guerra. Parece, portanto, que Dorrigo Evans é uma personificação do amor, como um paradoxo ambulante, assim como todo e qualquer ser humano. E esse é um ponto a ser desenvolvido para uma análise em potencial muito maior.

Flanagan, neste sentido, comenta que “[...] se quiser escrever algo verdadeiramente sombrio, é preciso oferecer esperança dentro de uma história que oferece amor. Sem isso, a história não seria justa com nossa natureza humana”. Sem isso, porém, não poderíamos vivenciar a experiência de ler uma obra que, com certeza, ficará para o futuro. Sem isso, não poderíamos vivenciar um pouco de nós no outro.