9 de junho de 2015

Quase um retrato de Mário de Sá-Carneiro

O poeta em inércia contemplativa. Quase. O ar perdido de uns olhos entregues à espira aérea que os eleva aos cumes. Quase. Atitude contemplativa figurando uma certa empostação languidamente blasé. Quase. As mãos enormes, displicentes e em claro desapego. Quase. Artista como dândi no culto narcísico de sua própria imagem. Quase.

O ar perdido e contemplativo de uns olhos vazados, fugidios, em fuga da realidade, alçando-se da sensação ocasional a correr no azul à busca da beleza. Eis uma tentativa de descrição verbal do retrato do poeta e ficcionista português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), de autoria de Almada Negreiros, ele também português, multiartista e militante nas lides modernistas. Esse registro artístico (o retrato de Sá-Carneiro por Almada) se pode nos aproximar do autor de Dispersão e Confissão de Lúcio também nos afasta dele.

 

Mário de Sá Carneiro, por Alamda

 

Reconheçamos: Mário de Sá-Carneiro enfatiza sim alguns lugares-comuns de uma arte que naquele momento se reivindicava não exatamente portuguesa, mas sim europeia (diga-se a bem da verdade, francesa). A visão aristocrática, compartilhada com Fernando Pessoa, autor este último de ensaio em que defende a necessidade de os artistas erguerem as armas da renovação artística contra a mesmice estéril de uma arte contaminada pelo filisteísmo de uma sociedade burguesa. O dandismo como manifestação desse aristocratismo assumido com todo orgulho e narcisismo por uma legião de artistas modernos à época na Europa (frise-se Paris). O esteticismo que torna a arte um absoluto que dissolve os limites entre a vida sonhada e a vida vivida.

Não são poucos os leitores (muitos bons leitores, diga-se de passagem) que confessam não ter paciência com as motivações aristocráticas e esteticistas de Sá-Carneiro. Trata-se de um autor que costuma repelir os que, incomodados, rechaçam o exacerbado narcisismo, as cenas de completa ociosidade, o discurso elitista fortemente marcado pela compleição do dândi.

Quase os traços de Almada cristalizam Sá-Carneiro. Quase. Almada deteve-se no aparato mais ostensivo de Mário. Figurou uma imagem reduzida de um autor que soube explorar nos limites da paixão a perseguição a um ideal inalcançável: sua proposta de fazer da arte a própria vida. Figurou, de certo modo, uma imagem perniciosa de um autor que, determinado a cumprir essa proposta audaciosamente de alto risco, levou-a às últimas consequências, assumindo-a integralmente como impossibilidade de renúncia.

 

Quase

Um pouco mais de sol – eu era brasa,
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho – ó dor! – quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim – quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo ... e tudo errou...
– Ai a dor de ser-quase, dor sem fim...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que, desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol – vejo-as cerradas;
E mãos de heróis, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
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Um pouco mais de sol – e fora brasa,
Um pouco mais de azul – e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...

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Este testemunho é e não é um mero documento. Eu digo que é preciso confessar-se. Isso mesmo: primeiro confessar-se leitor, aquele que anseia muito captar uma sensibilidade e esforça-se para isso. Descobrir-me leitor de Sá-Carneiro exigiu-me atravessar seus textos poéticos e ficcionais para cumprir de algum modo a sentença síntese de toda sua obra. Encontro de leitor com um autor que vive a arte como um absoluto, literatiza a vida qualquer que seja o momento, como quando experimenta a sensação de polir as unhas e vive esse momento como uma experiência mística que ignora quaisquer limites para chegar ao radicalismo da experiência humana mais funda.

A vida, a natureza, que são para o artista? As grandes Horas! – vivê-las a preço mesmo dum crime! Só a beleza redime – Sacrifícios são novelas.

E o leitor (como eu) que não se pode vencer, pode-se esmagar,
– Vencer às vezes é o mesmo que tombar –
Tombei...
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E quase fico só, esmagado, sob o fulgor e a vertigem dessa obra.