14 de maio de 2015

Perdidos e encontrados

Tereza era dessas mulheres distantes da vida, mas profundamente ligadas ao viver, e por isso mesmo mantinha-se no mundo. A impressão que ela tinha de si mesma, quando achava que se compreendia, era a de que nascera para ser só, e por conseguinte, a vida era uma eterna busca de sentido, que terminava por nunca encontrar. Dona de uma personalidade assertiva, direta, era também, paradoxalmente, insegura e dona de um olhar fugidio. Oscilando entre o alegre e o triste, tinha vários amigos, pelos quais era constantemente solicitada, uma casa para morar, um emprego público, muitas dúvidas e duas certezas: gostava de beber e de ler.

Maurício era desses homens de uma sensibilidade à flor da pele, mas ligeiramente endurecido pelas décadas de vida que acumulava. Não eram muitas, mas como sua alma era milenar, sentia sobre os ombros muitas dores do mundo, que refutava nos momentos de dor e angústia, solidão e descrença. Também achava que o que dava sentido à vida era o fato de o ser humano querer responder uma pergunta que é claramente maior que ele, e que seja através dos amores, do trabalho, dos amigos ou das artes, ele teima em querer responder. Era consciente do autoengano contido nessa ideia, mas era também resignado com sua condição de ter nascido homem e não peixe. Paciência.

Encontraram-se de forma improvável, no batizado da sobrinha de Maurício. Já passava das oito da noite quando Tereza chegou. De onde estava, ele a viu entrar e sentiu o impacto de sua presença. Teria de sentar-se perto dele, fatalmente: as cadeiras disponíveis encontravam-se praticamente ao seu lado. Foi exatamente o que aconteceu. Tereza chegou com seus muitos gestos e fala imperiosa; Maurício achou-a divertida, de cara, e foi apresentado a ela por Edivânia, a irmã de Mauricio que batizava sua filha àquele dia.

De repente, a surpresa.
“Eu lembro de você”, disse Tereza, de pé, enquanto Maurício, sentado, olhava para ela entre envergonhado e confuso. Edivânia resolve entrar no assunto.

“Não lembra, Maurício? Do tempo da faculdade, ela ia muito lá no campus onde você estudava comigo...” e passou a citar outros nomes. Todos indecifráveis.

Não, ele não lembrava.

“Não precisa ficar com essa cara. Eu sou muito facilmente esquecível, mesmo”.

A julgar por aqueles curtos momentos, ele só poderia atribuir aquela frase a características de Tereza que ele só viria a conhecer muito depois, portanto, naquele instante, ele não fez julgamento nenhum e tentou se explicar.

“Que é isso... Dá pra perceber que você não é esquecível, de forma alguma. Eu é que tenho uma memória completamente alvejada por tiros. Lamento”.

Em seguida, Maurício ofereceu-se para pegar salgadinho, bolo, refrigerante, gentilezas que ela aceitou.

“Você é professor, não é?”

E o assunto passou a enveredar por aí. Tereza pensava em largar tudo e ser professora, só que noutro país. Mal nascia ali o descobrimento, Maurício já se via acenando em despedida, lágrimas nos olhos.

Ele compreendia, naquele momento, que tal como ele, ela era uma perdida na vida. Não como quem paira, como quem fica estagnado juntando lodo, mas como quem tenta encontrar a estabilidade possível.

Maurício falou da sua profissão, de suas dificuldades, dos prazeres também, das alegrias diárias com as conquistas dos alunos, o aprendizado. Conversaram durante o que pareceram horas. Prometeram encontrar-se no Facebook e começar uma calorosa amizade.

Maurício estava completamente extasiado com aquela mulher tão altiva, de uma mente tão ressonante, ali, disposta a conversar com ele durante tanto tempo. Poucas são as pessoas que se disponibilizam para esse ato de retirada de camadas para o outro, hoje em dia, e ele acreditava estar diante de um ser humano realmente único - e estava.

Tereza sorria, fazia trejeitos com as sobrancelhas, esticava e recolhia os braços, mastigava ouvindo, daqui a pouco já repetia todos os gestos. E assim a alegria de estarem juntos ia caminhando.

Cumpriram tudo o que se prometeram. Adicionaram-se no Facebook. Trocaram e-mails longos, verdadeiros contos, sobre a vida um do outro, sobre as cruzes que carregavam, as leituras que faziam, as pequenas alegrias da vida. Encantaram-se, porque aquela amizade lhes dizia alguma coisa. Na verdade, lhes dizia muita coisa.

Buscavam brechas para se ver, continuavam conversando de tudo – e os livros sempre se imiscuíam para a conversa, aquele que fora um elo entre eles, desde o começo. Tereza dizia que descobrira a literatura tardiamente na vida, “após os vinte anos”, e que já passando dos trinta, ainda tinha muito o que ler. Maurício sempre fora leitor voraz, mas considerava que nesse tocante ela era muito melhor do que ele.

Aprenderam muito um com o outro. Sabiam que num mundo onde tanta coisa boa se perde, onde o descartável é soberano, terem se encontrado era uma dádiva da vida.

E é justamente por terem essa certeza, que se valorizavam.

Não fosse o fato de Maurício ser gay, com certeza teria se apaixonado por ela de uma maneira rara.
Sabiam-se seres nômades de si próprios. E foi justamente por estarem perdidos que se encontraram.