28 de abril de 2015

Um passeio

Eu sei que quanto mais pra frente andar, pior será. Sair de casa neste horário e desse jeito é inconsequente demais, não estou enxergando nada. Sinto algo raspando na sola do pé, mas o que? Folhas secas talvez. Mas não sairia sangue se fossem apenas folhas, sairia se fossem pedras? A dor é mais forte, mais insistente, mais cruel. São vidros. Com certeza são cacos de vidro rasgando a finura de minha pele. Como aquela história de João e Maria, estou deixando rastros pelo caminho. Será possível voltar por eles? Voltar para onde se eu estava fugindo? Era uma fuga?

- Então para, olha a lua!

Meu reflexo projeta-se numa poça e serve de espelho por um instante. Onde está minha imagem? O que vejo está desconfigurado, as partes não se encaixam, estão faltando fragmentos e o resto está derretendo. Continuo andando, andando, andando. O barulho está cada vez mais alto, estou cada vez mais perto. Não existem sombras, a escuridão faz todo seu trabalho. Quanto mais adentro, mais desvios, mais buracos, mais perigo. Eu caio e me rastejo, a roupa branca é rubro negra, os movimentos estão quase todos perdidos. Não há jeito de voltar, não há fôlego pra isso. Os machucados doem como se sal fora jogado por cima dos cortes e lavados com água fervente. Eu sei que está logo ali, eu estou indo, estou cambaleando. Os olhos já não servem para ver, mas para serem vistos. Dizem que são o reflexo da alma, então manter-os-ei bem fechados para não correr nenhum risco. De pé, com o busto para frente e os braços para trás, sinto uma brisa, um vento forte, uma ventania, uma tempestade. Já vai passar, vai demorar um pouco, não se irá se prolongar, está longa, não vai acabar. No alto, costas curvadas, joelhos dobrados, então, caí.