15 de abril de 2015

Sábado de aleluia

No sábado de aleluia da minha infância, o boneco Judas era queimado na cerca de arame farpado da casa de seu Antônio. Calçava os sapatos velhos de seu Zé, vestia a blusa surrada do João, trajava calça e cinto usados do marido da viúva da rua de baixo. No sábado de aleluia da minha infância, toda a rua saía pra fora e projetava no boneco Judas alguém que merecesse ser queimado. Era uma festa pra lá de metaforicamente cruel.

No sábado de aleluia da minha infância, as crianças podiam ir dormir mais tarde. Os carrascos preparavam o álcool e os fósforos e o carro que carregava o boneco Judas pelas ruas rugia em buzinadas que estrondavam tímpanos. Era uma alegria só! Tinha gente chegando da missa, tinha gente fingindo que chegava da missa, tinha gente que nem fazia questão de ir pra missa. Perto das 12, o boneco Judas chegava à cerca e era, lá, amarrado e emaranhado para assistir a leitura de seu testamento.

Na minha infância, eu não sabia o que era o testamento do Judas. Lembro que era uma das partes mais alegres, todos riam a cada piada de sentido obsceno que o porta-voz do boneco lia. Tinha gente que chiava com o testamento. Só não tinha quem me explicasse como um boneco podia ter escrito um testamento, principalmente como ele poderia ter algo do que dispor.

No sábado de aleluia de hoje, não tem mais Judas, a cerca virou muro e seu Antônio não está mais vivo. Estão todos emparedados em seus medos e picuinhas, atentos para não serem os queimados do dia. Num mundo em que ou se amarra ou se é amarrado, anda-se por aí suspeitando de todos os beijos e não só os de Iscariotes. É como se fôssemos todos cristos à espera não literal da guarda romana guiada pela violência moderna, nossa pior traidora. Nem era tão cruel, na infância. Pelo menos não como hoje.

 

Dawton Valentim

Crônico por natureza, Dawton Valentim é o Tal Pensante que escreve blogs desde que o mundo é mundo. Falta espaço nele pra tanta poesia. Libriano agudo – com todo o charme da ascendência em Escorpião, é apaixonado por mídias digitais, trabalha/estuda na UECE, é bolsista de iniciação científica e faz 97coisasaomesmotempo.