20 de fevereiro de 2015

NONATO, CAPÍTULO 4

4.

Nonato entrou em casa, deixando a porta aberta atrás de si. Observou a sala vazia, reconhecendo seus diversos objetos pela primeira vez. Raios de sol penetravam pelas brechas nas telhas, deixando ver o balé de poeira e silêncio. Era o único movimento do cômodo. Como uma metáfora.

Tentou e não conseguiu parar de torcer o pescoço. Àquela altura, ele imaginou que ainda sentiria a presença de sua mãe, como se ela nunca tivesse saído, como se apenas dormisse no quarto ao lado. Em verdade, apenas sua ausência cobria as paredes, impossível de enxergar. Mas Nonato sabia: em cada gaveta, armário e caixa de sapatos, se escondia o vazio. Talvez devesse se preocupar com o cadáver.

Com certo esforço, Nonato deu o primeiro passo para dentro da casa. Era como andar na superfície de um planeta estranho. Seus passos não condiziam com a gravidade e, se tentasse respirar o ar alienígena, certamente morreria. Percebeu, sobre os móveis da sala, uma camada fina de poeira escura.

A galeteria ao lado queimava carvão e pequenos pedaços rodopiavam para dentro de casa, manchando as paredes e todo o resto de preto. Sua mãe costumava, todos os dias, limpar a casa e reclamar, limpar e reclamar. Anos, já.
Nonato deveria passar um pano. Dormir, varrer, sonhar, talvez. O balé de poeira, os pequenos pontos negros na cadeira branca, o fantasma do fogo deixavam sua cabeça leve e quente. O coração acelerado. A boca seca. Nonato perdeu o equilíbrio. Tudo ia ficando escuro, coberto de carvão, até sumir.

***

A mãe dizia que Gilson não era ruim, mas Nonato não acreditava. Gilson era ruim, sim, como os leões que ele via na televisão. Um mal profundo, do tipo que se esgueira entre as árvores para roubar filhotes. Ruim feito a noite.
Quando precisava sair (só quando precisava), Nonato pisava macio, atento aos passos de predador. Se encontrasse com Gilson, não tinha opção que não correr e se esconder. Não sabia porque o menino gostava de perseguí-lo, mas sempre acontecia. Gilson era mais novo e mais forte, de uma força de bicho. Mas o pior eram os olhos de cão raivoso, sempre encarando o chão ou a orelha esquerda da gente.
A mãe dizia que ele não era bom da cabeça. Nonato, que acordava às vezes com os gritos do outro de madrugada, só tinha medo.

***

Gilson tinha uma doença que sua mãe, Dona Val, não conseguia pronunciar. Era desses meninos de ganhar a rua de cueca e voltar sabe que horas depois de aprontar sabe o quê. Quando chegava em casa, não dava conta das saídas. Apenas fitava o chão em silêncio, ouvindo os berros e lágrimas da mãe sem sentir. Com o mesmo estoicismo, levava as chineladas devidas e ia para sua rede, no quarto que dividiam.

Ele não saberia como explicar que passava o dia inteiro à beira do canal procurando gafanhotos e sapos. Como era fascinado pelas estruturas finas e verdes e pela pele escorregadia e por toda a vida que povoava o barro negro. Talvez, em outro lugar, Gilson pudesse crescer e se dedicar às suas pesquisas, decifrando a complexa arquitetura dos insetos.
Aqui, na beira do canal, Gilson cresceria, conseguiria um emprego entregando sacolas na bodega do Juraci e ganharia o apelido de Fuinha, porque parecia uma fuinha mesmo. Nunca lembraria de contar o troco direito e eventualmente se apaixonaria por Aline do caixa.

Enquanto isso, ele apenas ia de um lugar ao outro, cercado pelos moleques da rua. Não entendia que seu jeito estranho de não olhar nos olhos e a fala rara e atravessada fazia com que se sentissem acompanhados por um monstro. Como aqueles garotos do desenho animado. Gostavam de incitá-lo a perseguir as crianças mais fracas e ele gostava de correr.

Quando começavam os gritos e xingamentos, nunca tinha certeza do que estava acontecendo, apenas corria, apreciando a flexão dos próprios músculos e o vento lhe bagunçando os cabelos.

***

Essa nem era a pior parte para Nonato. A dor no estômago quando saía de casa, sim. Esperava encontrar os moleques ao próximo passo, quando virasse a esquina. Então, um pouco depois. Assim, por todo o caminho, de sua casa à padaria ou à bodega do Joaquim. A rua era um campo hostil, cheia de gritos e risadas de escárnio apenas esperando para acontecer.

Quando acontecia, Nonato sentia uma mistura de medo e alívio. Gilson, de olhos baixos e grito fino, investia em sua direção, o peso do corpo o impulsionando para frente. Nonato abandonava o que tivesse nas mãos e corria. Sem olhar para trás, concentrado em não trocar as penas, corria e corria. O que aconteceria se parasse? Seria devorado, desossado, como a gazela da televisão, como os frangos da galeteria. Por Gilson ou pelos moleques que se riam ou por qualquer um que se dispusesse.

***

Em casa, muitos anos depois, Nonato não era perseguido por ninguém. Mesmo assim, sentia o coração batendo forte em seu peito e um suor pegajoso colando a camisa às suas costas. Um zumbido muito fino não o deixava pensar direito. Andava de um cômodo a outro, procurando a vassoura, depois arrumando a cama ou procurando o quê mesmo?

Olhava para trás, como se tivesse nove anos outra vez e fosse perseguido pelo filho da Dona Val, o que não era bom da cabeça.

***

E ele sempre estava lá, correndo como se fosse cair. Nonato tentava ir mais rápido, tropeçando nas pedras do calçamento. Se alcançasse a porta, estaria seguro. Passou pelo portão de Seu Eudes e ouviu os latidos da doberman preta, mas estava concentrado demais para se assustar. Gilson hesitou, porém. Só o suficiente.

***

Nonato pegou a toalha. O suor empapava seus cabelos e descia pelo pescoço. Era difícil respirar. Quando entrou no banheiro e fechou a porta, precisou se segurar na pia para não cair. Nu, sozinho e com medo, Nonato saiu para a rua.
Quando abriu a porta, viu a si mesmo, aos nove anos, fugindo de Gilson. Ele já fora assim tão pequeno? Os dois vinham, correndo tão próximos do chão que pareciam flutuar. Ele assistiu a si mesmo empurrando o pequeno portão e escalando os degraus, as mãos escorregando no trinco enquanto procurava seu perseguidor por sobre o ombro.
Ouvindo o barulho da porta, sua mãe apareceu (seu rosto tão liso e o pescoço). Ela arregalou os olhos, vendo o filho suado e assustado. Segurou as mãos trêmulas de Nonato e o abraçou. Estava tudo bem.

Estava tudo bem.

Estava tudo bem.

Nonato, adulto, não tinha Gilson para fugir de. Tinha uma pressão atrás dos olhos que o cegava no ritmo do coração. Estava na rua, de toalha, depois nu, buscando ajuda. Tocou a campainha da vizinha, mas não esperou resposta. Então, subiu a rua. Dona Terezinha, varrendo a calçada, não levantou os olhos. Ele gritou (gritou?), os braços estendidos à sua frente, tateando o calor sufocante que lhe cobria como uma redoma.

Dona Terezinha? Tentou chamar a atenção de um ciclista que passava, mas foi ignorado. Com passos cambaleantes, alcançou a bodega do Joaquim. Por um momento, pensou que era apenas poeira no silêncio. Descobriu que não quando tropeçou no desnível na calçada e bateu a cabeça contra o freezer de picolé. O Jota levantou os olhos, vendo o refrigerador afastar alguns centímetros sozinho.

Nonato se deixou ficar na calçada, ele mesmo se desfazendo em pequenas partículas de carvão. Percebeu com os olhos arregalados e o queixo melado de baba que agora ele era Gilson. Antigo e selvagem. Talvez não muito bom da cabeça. Ninguém pareceu perceber o homem sem roupas no chão. Com sua mãe morta, nada mais existia, ele nunca havia nascido. Um parto ao contrário, onde voltaria para qualquer sorte de útero invisível e impenetrável.

Massageando a cabeça dolorida, Nonato tentou levantar. Àquela altura ele já sabia, e sempre soubera. A certeza, como todas as coisas que escapam ao reino do natural, apenas era. Entrou na mercearia e se postou na frente do Jota. Nada. Derrubou uma caixa de chocolates ao lado da registradora. O velho apenas resmungou e apanhou os doces do chão.

Nonato olhou para as próprias mãos. Pareciam tão sólidas quanto sempre foram. Depois, apanhou uma caixa de suco, um punhado de bananas e um chá de erva-cidreira para a mãe e saiu correndo, o pênis solto balançando entre as pernas. Talvez tudo, no fim das contas, fosse poeira e silêncio.

Márcio Moreira é autor da coletânea de contos Odisseu e colunista do site Spoilers.

Leia os capítulos anteriores aqui.