11 de fevereiro de 2015

A BAILARINA NEGRA

Conta-se que, ainda antes dos primeiros testes seletivos, as meninas que sonham em disputar as famigeradas vagas do Ballet Bolshoi mazelam-se na busca por um corpo perfeito e afilado, que se equilibre sem dificuldade às pontas dos pés.

Ao abrir a janela, à procura de uma brisa fresca que dançasse pela sala, vi ondular sobre o asfalto quente como que uma miragem desértica, causada pelo sol abrasador do meio-dia. As calçadas, àquela hora, estavam sem sombra alguma e diferenciavam-se do asfalto em quase nada. Voltava-me à televisão, que meu irmão caçula deixara ligada em um programa sobre maquiagens alternativas, quando a avistei, imperiosa, apoiada no muro azulejado da última casa da rua. Era uma negra, mas negra mesmo, dessas de cor forte, mas que aos poucos foi sendo coberta pelas cinzas urbanas. Fiz com minhas mãos uma aba de boné e amiudei os olhos para certificar-me de que realmente era ela. Pude ver quando, ao longe, levou as mãos à boca magra e tossiu por duas vezes, depois cuspiu, depois desapoiou as mãos da parede azulejada e começou seu desfile-dança em plena via.

Pés no asfalto-lava, a bailarina negra ora sapateava e equilibrava-se nas pontas dos pés, ora saltitava ritmicamente nas calçadas ardidas; a roupinha, que não era rosa, contrariava as expectativas, esburacada e encardida, decerto enfeites para o seu número; os cabelos, nem repuxados sobre o casco da cabeça nem arrumados em um elegante coque, era um pixaim seco e irregular, como que estaqueado a golpes de foice; bailarina vaidosa, nem precisou se esforçar para atingir o peso ideal, o tempo e seus semelhantes agiam em árduo trabalho para deixa-la em uma forma. Os olhos dela, de negra, esbugalhavam-se para fora, ao mesmo tempo em que eram recaídos; os ossos do rosto passavam quase despercebidos por causa dos rodopios incertos que dava em sua dança pela via, rodopiava enquanto, desconcentrada, pressionava a barriga murcha com ambas as mãos.

Confesso que me assustei quando a bailarina tombou à primeira vez, o que pareceu custar metade do joelho e um chaboque do cotovelo, decerto também fazia parte do seu show. Continuei imóvel a observá-la. De quatro patas, abriu a bocarra de bailarina sem dentes e grunhiu retorcendo o pescoço. Veio tateando pelos muros esburacados e aproximou-se ligeiro, cambaleante, porém depressa. Caiu debaixo da minha janela, bocarra ainda aberta, sem som algum - ou eu não ouvia? -, apenas um hálito fétido.

Pôs-se a se debater na calçada quente, braços ondulantes e boca cheinha de espumas; mãos trêmulas, as unhas sujas como que tentando penetrar o asfalto duro e quente – que ela agora parecia nem sentir - e aos poucos iam quebrando-se e sangrando. Agora tremia pouco, dava pequenos espasmos, olhinhos revirados. Contorceu-se derradeira vez, e sua cabeça tombou ao lado direito do peito, lágrima morna rolando pelo rosto pálido, dando último suspiro e morreu parte imortal, em uma das mais belas interpretações da Morte do Cisne – negro.