4 de fevereiro de 2015

Segredaria, de Cel Bentin

A poesia brasileira anda capenga. Essa é a frase que mais tenho ouvido ultimamente. E eu poderia me juntar ao coro, mas prefiro acreditar que, apesar de tantos livros que nada acrescentam, temos bons poetas que, por mais que não possuam ainda uma ótima obra, têm muito a acrescentar à nossa atual poesia. Cel Bentin, e sua Segredaria, é um deles.

A verdade é que responder se um livro de poesia é “bom” é algo extremamente complicado pra mim. Ultimamente tenho lido mais livros bons do que livros que nada acrescentam a minha leitura. E aí reside o problema. “Bom” para mim quer dizer que poderia ser melhor. Mas ao mesmo tempo estabeleço o conceito de que a obra possui consistência, coerência como uma obra, e que se o autor se entregar realmente à literatura conseguirá desbravar novos livros com maior potencial.

O livro de estreia de Cel Bentin, publicado pela Patuá, é um bom livro. Consistente, mantém do início ao fim a mesma constância poética, trazendo uma leitura que nos dá vontade de destrinchar todos os segredos do eu-lírico ali presente. O autor da obra parece querer nos inquietar através das epígrafes que põe em vários poemas, onde vai nos revelando as suas leituras mais íntimas. De Manoel de Barros a Cecília Meireles, Bentin avisa que a vida é algo delicado e que se não tivermos cuidado perderemos o nosso próprio eu, dentre tantos outros que residem as metrópoles do país.

Diante de tal delicadeza, ninguém é mais visível.

Parece que assim, tornando-se invisível, vamos perdendo o tato, já não sabemos mais manter o respeito com o outro, falar baixo não existe mais, estamos todos conectados através das grafias gigantes, com as falas que reverberam ostensivamente de maneira cruel o mundo do outro. E o interessante é observar que não vamos nos tornando invisível porque desejamos, mas porque vamos olhando os outros assim, dessa maneira, meio que sem vontade de entender quem quer que seja. Não conversamos mais, tudo sai de nossas mãos, não mais das bocas. É como se vivêssemos um momento onde não há mais segredos, tudo está sendo desvelado de maneira cruel e intransigente, estamos todos perdidos sem amor.

Não se (p)repara o amor

E falar sobre isso me inquieta bastante, pois tenho lido vários poemas todos os dias, de autores que tentam falar desse sentimento e não conseguem. Falar sobre isso é como pisar em ovos, é como atravessar o deserto com apenas uma dose de água. E é justamente isso, não se prepara o amor nem se repara, principalmente ao escrever, ao tentarmos plasmar no papel o que todos sentem, o que cada um sente, de maneira que possamos nos ler ali, entre os segredos ditos em voz alta, aos gritos, que Cel Bentin escreve em seu livro.

Diante disso, o que me dói é saber que o eu-lírico não está só, que está muito bem representado em qualquer cidadão. Nossa visibilidade se dissipa enquanto perdemos o carinho, os sentimentos que poderiam nos unir como uma muralha.

O livro de Cel Bentin fala sobre coisas frágeis e que são difíceis de se falar, por isso adormeci esse texto por meses, e até agora não sei se sou capaz de julgar o livro, a única coisa que tenho em mente é de lê-lo de novo e de novo. Sentimentos que mexem com qualquer pessoa nunca são facilmente transferidos para o papel, mas os versos de Segredaria parecem ter saído do mais íntimo poema, que pretende evidenciar que a flor que um dia apontaram entre o asfalto e a calçada ainda existe. O cuidado do autor está em não se sentir satisfeito com o que possui, tenta ele, assim, entre os poemas, criar imagens fantásticas onde se possa segredar o mundo que poderíamos querer, como em Prenda dos portos:

Na parede, as mãos de sua gravura úmida provocam um feitiço azul. Um céu manuscrito a desapertar sonhos à revelia do dia, um anseio com força de mar a escorrer num gume destemperado, calado e doce; silêncio que transcreve sem pedir cor ou perder volume: transparece sem calar mistério, exprime corte sem arriscar os burburinhos da voz.

Dessa maneira, Cel Bentin vai criando poemas e algumas exceções à regra com pequenas historietas que não chegam a cinco, mas que acabam por “descobrir seu volume em silêncio”. Tenta tatear as palavras através do som que elas emitem com suas rimas nada perfeitas e que não destoam, ao contrário convidam a senti-las com nossas mãos e olhos, para que possamos alcançar “o segredo da fome aberta [a]os olhares alheios”.