4 de fevereiro de 2015

Divino Humano

O homem, como disse o filósofo, é mesmo a medida de todas as coisas, haja vista a história daquele indivíduo, o último sobre a Terra, que, tendo perdido todos os seus pares, resolveu criar um ímpar.

Desolado e insatisfeito com a solidão sem fim e inconformado por não ter com quem dividir suas ideias e sentimentos, ele procurava uma maneira de acabar com o enorme tédio de ser o único em todo o planeta a poder pensar. Usou, entre outros artifícios, de intuições de engenharia para construir estruturas humanoides, como um magricelo feito de galhos de árvores, que até se sustinha em pé sozinho, embora não andasse nem falasse nem pensasse. Aproveitou, ainda, muitos outros materiais, mas nenhum que pudesse compartilhar com ele e lhe contar, por exemplo, a sensação de ser uma pedra ou um pedaço de tijolo. Queixou-se de haver ali pouquíssima argila, pois com mais faria um perfeito humano, com todas as suas dobras e cavidades, relevos e depressões; lhe faltaria apenas a vida vinda de um sopro que o eterno solitário daria dentro das narinas do homem de barro, e este então seria vivo até o momento em que fosse de novo morto, fosse de novo barro.

O único sopro que houve foi um forte suspiro do homem, de decepção por não conseguir o que queria. Outro suspiro veio logo depois, por um alívio que o homem sentiu ao perceber que, muito além das mãos, e antes delas, o que lhe dá o poder da criação é a cabeça.

Usou somente a cabeça. Apenas o cérebro agiu na intenção de mostrar do que era capaz, de criar algo que nenhum outro humano já existente jamais tinha pensado em criar. Algo que, não podendo estar ao seu lado, o acompanharia para onde fosse. Seria mais que um simples e mesquinho ser humano. Bastava de mediocridade e comedimento! O que ele tinha acabado de inventar era superior, diferente de todos que um dia ele conheceu, e semelhante somente a ele, o criador.

Não estava mais sozinho e nunca mais haveria de estar, pelo menos enquanto vivesse porque, sendo a criatura inerente ao criador, só com a morte deste é que aquela se desfaria.

Estava feliz. Feliz e orgulhoso. Muito mais orgulhoso que feliz. Cheio de si, explodindo. Ele tinha de mostrar sua criação a alguém, ela não poderia passar despercebida. Mas não existia ninguém que, maravilhado, pudesse admirá-lo pela sua inteligência e força imaginativa, ninguém que lhe rendesse tributos por ele ser o que era e por ter feito o que fez, nem uma pessoa sequer que o tivesse como ídolo, que o amasse e o adorasse e em seu nome construísse cidades e escrevesse livros, e vivesse em paz e fizesse guerra, ninguém exceto a sua própria criação.

Esquecido do que o tinha movido a inventar o que inventou, o homem não pensou em outra coisa a não ser em contar ao novo ser como ele o tinha gerado, fruto de sua infinita inteligência e eterna sabedoria. Menos de dois dias se passaram até que a criatura, irritada com a vanglória do criador, e já consciente do que ela própria era, do poder que o homem tinha lhe dado, tomou as rédeas do monólogo e inverteu a situação. Todo o falatório do homem não passou de um grande e forte processo de autoconvencimento da própria força, o qual acabou por atingir um nível tal em que o feito, simplesmente por ter sido realizado pelo homem, ganhou mais destaque que o homem que o realizou.

Menos de dois dias foram necessários para que essa situação se estabelecesse e daí nunca mais mudasse por séculos e milênios.

 

por Paulo Henrique Passos

Paulo Henrique Passos de Castro nasceu em Fortaleza-CE, aos 27 de abril de 1988. É graduado em Letras-Português pela Universidade Federal do Ceará e é professor da rede estadual de ensino. Foi integrante, por seis anos, do Grupo Eufonia de Literatura. Ganhou menção honrosa no Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro 2009, em cuja coletânea teve publicada a crônica No coletivo.