16 de janeiro de 2015

Paz e amor ao contrário

Por conta dos rumos que minha profissão tomou, passo boa parte do dia dirigindo para todos os cantos da cidade. Vou desde regiões nobres a áreas mais afastadas, enfrentando o caótico trânsito dos grandes centros urbanos.

Aonde quer que eu vá tenho observado, sempre com grande pesar, o número crescente de pombos esmagados pelos pneus dos carros. Eu passo e eles lá, uma enorme massa sem forma, resquícios de penas que me fazem compreender que ali se tratava de uma ave. Dependendo do momento da impactante visão, ainda consigo identificar algumas partes. Às vezes, parece que pegaram a ave e achataram-na no asfalto quente e selvagem.

Não tenho notícias de que a população columbina tenha aumentado nos últimos anos a ponto de fugir ao controle. Ao contrário, antes vistos aos montes em praças, beliscando o chão, cavocando frestas, deitados espapadamente sob o sol borbulhante, fazendo festas com a areia dos playgrounds, hoje pousam em locais públicos de forma espaçada, sem grandes aglomerações. Dois ou três aqui, mais um ou dois acolá, e é só. Parece que depois desaparecem – sob as rodas dos carros, talvez.

Sempre achei o destemor dos pombos algo fascinante. Aquela ave que não tem medo de gente, quando em geral qualquer bicho daquele tamanho, por vezes até um pouco maior, foge ao menor sinal da presença humana. Os pombos, não. No máximo dão uns pulinhos para o lado, mas permanecem ali, buscando entre os caminhos, espaços entre as pedras, algo que lhes dê força para continuar voando. Se isso se dá por conta dos milhares de anos da convivência com o homem, ou se é algo no DNA desses incautos bichinhos, deixo para aqueles que entendem de aves. Eu só sei que por conta dessa reverência à coragem, quando criança, queria cuidar de um como quem cuida de um cachorro ou gato. Entretanto, nunca pude ter um – meus pais me advertiam das doenças que poderiam causar, e assim, em casa, pombos foram substituídos por periquitos, criados presos, e depois nem isso.

Foi por essa mesma época que eu comecei a compreender o significado simbólico dos pombos. Sempre via na televisão que em qualquer evento ecumênico, lá se ia um ou mais pombos para o alto, libertados das mãos do papa ou de algum de seus asseclas, rumo ao desconhecido. A reportagem dizia que “o pombo fora solto para simbolizar a paz entre os povos”, ou o fim das guerras, ou seja lá o que fosse de ruim que estivesse ocorrendo naquele momento. O pombo era a antítese de todo o horror do mundo.

Em que momento, então, o símbolo da paz começou a ser tido como alvo? Não tenho a resposta para isso, mas tenho dois episódios para contar, ocorridos em momentos distintos no mesmo ano.

Estava dirigindo quando vi dois pombos beliscando no meio da rua. Parei no semáforo. Meu primeiro instinto foi o de passar com o carro vagarosamente perto deles assim que a luz verde me desse o sinal, buzinar com força e enxotá-los dali, o que na verdade é uma solução que só funciona no meu autoengano, porque certamente passado o susto, eles voltam. Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, no entanto, um carro estacionou ao meu lado. Olhei para a minha esquerda e vi um homem de algo em torno de trinta anos. Quando ele avistou os pombos, acelerou o carro em direção a eles, quando poderia facilmente ter desviado. A intenção era assassina, mesmo. Ter dado uma guinada na direção das aves deixou o intento claro. Enfiei a mão na buzina com força, direcionando ao homem uma atitude que antes deveria ter sido direcionada ao bicho, que por sorte, escaparam. Até quando, sabe lá deus.

Segundo momento: caminhando pela rua em direção a mais um aluno, ouvi dois homens dialogando. Falavam justamente dos pombos no asfalto. Foi quando ouvi um deles vociferando que tinha mesmo era que atropelar, que passar por cima, e que ele fazia aquilo com prazer.

Aquela última palavra – prazer – me fez sair correndo dali, num misto de dor, indignação e raiva – sim, muita raiva. Eu tinha a certeza de que se não me afastasse, iria arranjar confusão. Preferi não fazê-lo, e fui ao encontro das minhas obrigações.

Mas aquilo não saiu do meu pensamento.

Eu me indagava sobre em que momento nesta transição do caos ao caos passamos a nos tornar seres ainda mais destruidores e irracionais. Que o homem é predador de tudo, inclusive de si mesmo, não é novidade pra ninguém. Mas em que momento matar se tornou pleno prazer?

A sociedade nunca foi pacata nem santa, e dizer que antes as pessoas eram melhores é ser de uma nostalgia ingênua. A sociedade pré-tecnológica se conhecia menos, ou se dava menos a conhecer. As besteiras que antes se dizia apenas para um amigo ou dois, hoje são postadas em redes sociais para milhares de contatos. E este ciclo, que gera outros e outros dentro de gigantescas possibilidades de ação e reação, não tem fim. O que ocorre é que antes se ignorava mais. Se desconhecia mais. Os telefones com centenas de funções e a internet mudaram tudo isso, criando paradigmas nunca antes imaginados – e ajudando a criar, também, outros padrões de comportamento e posicionamento social. E isso não é só amedrontador, é aterrador, principalmente porque ainda não sabemos lidar com essas novas conjunturas sociais, nem com as transformações comportamentais que as tecnologias têm nos trazido.

Que o tipo de atitude descrita nestes dois casos só demonstram o quanto a maldade e a torpeza estão arraigados dentro de nós, não me restam dúvidas. Pensar que estamos nos transformando numa sociedade como a do tempo das cavernas, em que lutas corporais para a própria sobrevivência eram uma constante, nos tempos em que nossa linguagem não passava de grunhidos, me dá a certeza de que enquanto avançamos em uma série de questões, retrocedemos em outras, igualmente essenciais. O que e como faremos para modificar isso é que me causa uma desesperança.

E com a falta de compreensão entre nossos semelhantes, tenho me perguntado se, a despeito de toda essa tecnologia, não já estamos de volta a esses tempos.

Está no inconsciente coletivo que o pombo é o símbolo da paz. Parece a mim que agora estamos querendo matá-la de vez. Se apenas pelo desejo ensandecido, selvageria humana ou para descarregar ali as frustrações de um dia ruim, não sei e pouco importa. Ceifar a vida de um bicho por ódio ou prazer, seja qual for, é abominável. E diz muito sobre nós mesmos, enquanto espécie. Mais do que isso: passados milhares de anos de uma suposta evolução, temos feito questão de involuir.

Se foi para este fim que viemos, que a passagem por aqui seja sempre breve.