6 de novembro de 2014

A fuga

Mesmo que as janelas estivessem abertas, as portas com suas fechaduras não emperradas, e os portões com cadeados cujas chaves estivessem dispostas num molho pendurado à parede, ainda assim V. não conseguia fugir.

Um vento sombrio batia contra a janela, ao amanhecer. Trazia consigo os primeiros raios de um Sol indiferente à presença dos astros que a ele circulavam. Expurgava de V. um radiante sorriso, contudo. Isso porque, talvez naquele dia, em especial, pudesse ele, quiçá, ser sábio o suficiente para enganar-se com desenvoltura melhorada; e construir plano deverás bem elaborado para arregaçar as amarras que ele próprio lhe impusera às mãos cansadas, e os grilhões que tanto lhe faziam caminhar pesadamente, como a horda dos outros seres que diziam perseguir a felicidade; os mesmos ilustres cidadãos que, nas farmácias, formavam numerosa fila, sedentos por mais uma cartela de analgésicos que lhes dopasse os sentidos.

A cidade calmamente acordava, nas ruas que cercavam as prisões espontâneas – ou, em palavras mais verídicas, meras propriedades financiadas pela cultura da ilusão da conquista, para que fossem herdadas por nomes borrados em escrituras de tabelionato. A cidade, em si, em grande verdade, toda ela, parecia-se como um manicômio obscuro de portas abertas, tal qual a casa em que tanto V. como os outros habitantes se achavam. Isso significava, de modo profundamente intrigante, que não se tinha para onde fugir; sequer para a direita; ou para a esquerda.

Quem sabe retroceder o ponteiro da vida, tal qual num sonho como aqueles sonhados em cenas cinematográficas, a lotarem cinemas com telespectadores ávidos por máquinas do tempo que lhes faça esquecer que envelhecem mais do que gostariam; ou, uma vez descidos todos os grãos de areia para a cavidade inferior, inverter a ampulheta, e fingir que o tempo conta-se de forma jovial e inversa.

Os sons que V. ouvia eram cândidos, apenas se silenciosos ou perpetuados pela natureza. Os cânticos dos pássaros, no entanto, mesmo estes belos animais silvestres, eram aprisionados como fora seu coração trancafiado pelas normas dos sentimentos civilizados. "Como posso fugir destas gaiolas, nas quais colocaram-me desde muito pequeno, ensinando-me como, quando e o que amar e repudiar?", pensava insistentemente. O homem travava de classificar como selvagem aquilo que não podia colocar em grades. E o que em grades não estivesse, domesticado era definido. Mas, V. não se sentia domesticado; ou selvagem; V. era apenas humano. "Por que ser humanos precisariam empregar fuga de outros companheiros de espécie?", V. matutava, enquanto assistia ao vento levar, para longe, algumas folhas de um árvore, sem que o vegetal por isso se queixasse da fuga de um de seus membros; "a morte, para a natureza", continuou, "é muito mais aceitável do que para nós".

V. via na sociedade tantas contrariedades quanto em si, porém todas elas distintas das suas. Havia originalidade maltratante em todos os ambientes, em todos os amores e em todas as tragédias; Shakespeare, Goethe e Ésquilo assinalaram apenas pequena porção delas. "Talvez por isso eu não consiga fugir, mesmo tendo acesso ao molho universal de chaves; talvez por isso...", V. hesitava. E assim a manhã transcorria com o acordar dos vivos que cumpriam suas rotinas, prestes a desenrolar mais um segundo, em sequência a completar outras horas, e dias e vidas e padecimentos.

A parca Nona havia dado-lhe nove meses lunares, mesmo que sem sua conivência; a Décima cortado-lhe o fio, com uma tesoura afiadíssima. O que não compreendia, no entanto, era como o ato de fugir das casas que habitava (não se sentindo verdadeiramente em seu lar em nenhuma delas, tanto quanto o fossem aconchegantes à sua alma suas paredes e delimitações) poderia lhe fazer escapar da Morta, a fates inevitável.

por Lucas Vinícius da Rosa