30 de setembro de 2014

Carta a Julio Cortázar

Mestre, naquela época, não sei se já lhe disse, aconteceu-me de um coelho insultar-me os antepassados e descendência quando enfiei a mão no bolso para pegar as chaves e indignei-me porque saiu um espelho, precisamente esse instrumento que me traz aqui nesta Casa das Rosas hoje, 25 de setembro de 2014, ao soarem 19 horas. Que seja pouco mais ou menos a certeza dos acontecimentos, junto a essas batidas artificiais do tempo, entre a extrema certeza da razão e a esperança precária que damos à imaginação é que lhe falo agora.
 
Sim, naquela época, final dos anos oitenta, imerso nos sonhos amplos da adolescência, de algum modo, mal intuía que o mundo pode viver muito bem sem literatura e que poderia viver melhor ainda sem o ser humano. Sim, sem saber quem nos curaria do fogo surdo, do fogo sem cor que corre, saindo dos metros quadrados que ocupamos diariamente, desde o asfalto pegajoso que se chama mundo pela manhã até o ar falto do fim de tarde imundo, saturado de sangue dócil ainda que insubmisso, sem meio tijolo, tijolos inteiros empilhando uma satisfação canina, de que tudo esteja em seu lugar, a mesma mulher ao lado, os mesmos sapatos e o mesmo sabor da mesma pasta de dentes, a mesma tristeza de quem aperta entre os dedos uma colherinha e sente seu latejar metálico.
 
Naquela época, sim, saiu-me um coelhinho da garganta, insultando-me as certezas, como a da própria existência de si mesmo coelhinho branco, carregando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar em seu latejar infrene que se estende metálico entre o hábito que se vai enchendo de si mesmo quando ainda mal percebemos que estamos numa ordem fechada e sem saída e esse novo pedaço frágil e precário de nós mesmos que se chama acaso e é limite de outra coisa que só se conhece a partir do sonho e se manifesta numa manhã de primavera, como a deste dia, quando deslizamos entre o asco da notícia do telejornal  e uma outra ordem, acaso tímida, sugerida, que se desenha junto a um trevo macio, envolve-o desde o focinho e então ergue as orelhas, olha-nos fundo como se se desprendesse o horizonte do vasto oceano. Céus, duas orelhas em riste, plantadas e madurando por um tempo, seja lá um mês seja até um take, uma tomada mínima de perspectiva, nesga para o outro lado, horizonte. Até que o coelhinho branco é descoberto pela piscicultura e revela-se com toda a verdade um corpinho rosado, translúcido, de hábitos aquáticos, que é a larva conhecida como axolote. E esta mesma larva, fantasma ou máscara é cultivada por uma estranha família que vê neles axolotes os tigres de que carecem.
 
Pousam os tigres agora. Ouçam! Ouvido na coxa. Zeus. Dioniso. Arimã imbolando Putin-Obama-Israel-Isis. Ovidio entre a mais estreita identificação de Yin e Yang.
 
 
 
Entre o Yin e o Yang, quantos eones? Do sim ao não, quantos haverá? Tudo é escritura, ou seja, fábula. Mas para que nos serve a verdade que tranquiliza o honesto proprietário? A nossa verdade possível tem de ser invenção, ou seja, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas. Num dos seus livros, Morelli fala do napolitano que passou anos sentado à porta de sua casa, olhando um parafuso no chão. De noite, pegava-o e guardava-o debaixo do colchão. O parafuso foi primeiro uma simples piada, uma gozação, uma irritação comunal, reunião de vizinhos, sinal de violação dos direitos cívicos e, finalmente, um encolher de ombros, a paz, o parafuso foi a paz, ninguém podia passar pela rua sem olhar de soslaio para o parafuso e sentir que ele era a paz. O cara morreu de uma síncope e o parafuso desapareceu assim que os vizinhos chegaram. Um deles o guardou, talvez o olhe em segredo e o estude por todos os lados, voltando a guardá-lo e indo para a fábrica, sentindo algo que não compreende, uma obscura reprovação. Só se acalma quando tira o parafuso do seu esconderijo e o olha, fica olhando até ouvir passos e ser obrigado a escondê-lo rapidamente. Morelli pensava que o parafuso devia ser outra coisa, um deus ou algo assim. Solução demasiadamente fácil. Talvez o erro tenha sido aceitar que esse objeto fosse um parafuso, tão somente por ter a forma de um parafuso. Picasso pega um automóvel de brinquedo e o converte no queixo de um cinocéfalo. É bem possível que o napolitano fosse um idiota, mas também pode ter sido o inventor de um mundo. Do parafuso a um olho, de um olho a uma estrela... Por que entregar-se ao Grande Costume? É possível escolher a tura, a invenção, ou seja, o parafuso ou o automóvel de brinquedo. 
 
por Marco Aqueiva
98% extrato cortaziano(*)
 
[1] Este texto que foi costurado, sintagma a sintagma, a partir de citações apropriadas de textos de Julio Cortázar foi lido na Quinta Poética (69a edição), na Casa das Rosas, em 25 de setembro, com curadoria  de Paulo Ortiz. Carta a Julio Cortázar é uma das intervenções previstas no projeto “Nos próprios pelos”,  contemplado pelo ProAC 2013 – Criação Literária-Prosa.