18 de setembro de 2014

Enquanto meu pai não vem

Estudávamos na mesma escola, minha irmã e eu. Ela, um ano mais nova, saía da sua última aula e ia me esperar no portão de saída do colégio, onde ficávamos, raramente juntos, aguardando nosso pai, que saía do trabalho e nos pegava, geralmente uns quarenta minutos depois.

Era nesse intervalo de tempo, contudo, que as coisas aconteciam, e foi num desses momentos que eu me lembro de ter me apaixonado pela primeira vez.

Ela era alta, tinha um corpo curvilíneo sem ser magro, – o tipo de corpo que eu tenderia a apreciar também em adulto, de pessoas que tivessem onde apertar – cabelos longos e pretos, como uma índia, e uns olhos claros que, aliados ao sorriso, seduziam mais do que o canto de uma sereia. E eu tinha a ilusão de que ela sorria para mim, quando a via passar em direção ao portão, indo buscar sua filha, que descobri ser uma das melhores amigas da minha irmã. Enquanto as duas ficavam conversando às minhas costas, eu sentava no batente do portão, pra que ela nunca deixasse de me ver, pra que eu pudesse sorrir para ela e receber um sorriso de volta, e ir pra casa feliz, satisfeito, e com ainda mais fome, essa coisa de bicho, incontrolável, que aumentava vorazmente quando eu a via – eu, que naquele tempo nada entendia das fomes do corpo.

Eu abria um sorriso e ela sempre sorria de volta, e era assim que nosso jogo de conquista se cumpria. Até que um dia eu a vi ao lado do marido, que parecia ser bem mais alto e forte do que eu – portanto, meu desejo de tirá-la dele aos murros, e levá-la comigo como só nas cavernas se fazia, liberando todo o meu primitivismo inconsequente, murchou ali mesmo. Como eu faria para tê-la comigo, então?

Estava claro que eu não faria coisa alguma. Tinha era que me contentar em sofrer minha paixão à distância. Estava fadado ao padecimento de amor romântico, no auge dos meus 11 anos. Mas a fome era insaciável, e eu continuava comendo. E por causa dela, também, continuava ébrio de amor.

Aos poucos, foi ficando claro para a filha que eu tinha algum tipo de paixão pela sua mãe, e até mesmo minha irmã notou, quando certo dia disse, dentro do carro: “O Lauro está apaixonado pela mãe da Rafaele. É um idiota, mesmo. Tu num viu que ela é casada, não?”. Na cabeça da minha irmã, este era o grande problema, e não os mais de vinte anos que nos separavam, o que a tornaria uma pedófila de acordo com os padrões atuais.

Não custa lembrar que estudávamos num colégio católico.

A amizade entre minha irmã e a filha do alvo da minha paixão foi ficando cada vez mais sólida. Elas iam fazer trabalhos de colégio juntas, às vezes a Rafaele dormia em nossa casa, às vezes ela dormia lá, e eu ia vivendo minhas coisas de menino, curtindo esse samba cuja letra era marcada pela solidão.

Um dia, minha mãe foi nos pegar, ao invés de meu pai. Era raro, mas acontecia. E ela já chegou anunciando: “A Rafaele vai com a gente”. Minha irmã ficou logo animada, achando que a amiga ia almoçar em casa, conosco. Mas a mãe tratou logo de dispersar a alegria: “Não, Isabel, nós vamos deixá-la em casa e depois vamos pra nossa”.

Eu não tinha ainda ideia do que estava por vir, mas naquele instante fiquei amuado, porque não veria minha musa. E minha irmã ficou igualmente calada do outro lado, porque a amiga não iria lá pra casa. E a amiga também foi em silêncio, talvez por não saber como quebrá-lo, talvez por ela mesma estar quebrada, depois de cair em seus abismos.

Deixamos Rafaele na casa de sua avó, e eu perguntei à minha mãe, ansioso que estava por notícias da minha amada: “Por que a gente teve que ir deixar a Rafaele em casa hoje?”. Fiquei sabendo que a mãe dela tinha precisado fazer uns exames, e que isso levaria o dia todo. Mas foi aí que tive a notícia que me fez ganhar meu dia: “E os pais dela estão se divorciando, e por algum motivo ele não pôde ir pegá-la”. Então agora ela poderá ser minha!, pensei de modo incoercível, até chegar em casa. Eu fazia planos, eu queria arranjar um emprego, queria poder sustentá-la e à filha, fazê-la feliz, já que aquele homem não conseguira, não quisera ou não pudera. Talvez amanhã, quando ela fosse buscar a Rafaele, eu pudesse juntar coragem e ir falar com ela, oferecer meu ombro, meu carinho, e quem sabe?

Juntei toda a minha coragem para, no dia seguinte, não apenas sorrir pra ela, mas me levantar, apertar sua mão, e aos poucos ir tentando puxar assunto, conversar, e adentrar no processo de sedução máxima entre dois seres humanos: o convite para sair. Estava tudo arquitetado na minha cabeça, só ia depender da receptividade dela aos meus planos.

Só que no dia seguinte, ela não foi. Nem no outro. No terceiro dia, foi a Rafaele quem faltou, então eu sabia com certeza que não veria sua mãe. Minha vontade de comer passava. Em casa, meu pai me forçava a ingerir alguma coisa, com as velhas ameaças de que eu não teria sucesso na escola, nem cresceria, se não me alimentasse direito. Eu pouco me importava em passar na escola ou crescer. Que se dane tudo!, eu pensava. E não aparecia ninguém para me dar notícias. Eu passava o dia inteiro na escola esperando a hora da aula terminar pra ver se a mãe da Rafaele apareceria, mas nada. Nem a própria Rafaele, nem ninguém. Perguntei pra minha irmã, que me respondeu com um seco “parece que a mãe dela tá doente”, e não disse mais nenhuma palavra.

Na semana seguinte, Rafaele voltou às aulas. Esperança renovada de que a gripe da sua mãe tivesse curado e eu pudesse colocar meu plano em prática. Mas quem apareceu foi uma senhora baixa e atarracada, com um olhar de quem já tinha desistido de viver. Ela chegou, fez um gesto com a mão e Rafaele a seguiu, bichinho acuado e obediente, rumo a algum carro que eu não via do lugar onde estava, provavelmente estacionado na outra esquina.

E assim os dias viraram semanas e meses. Por algum motivo, a mãe de Rafaele não vinha mais pegá-la, só a avó. Normal, pensei, lá em casa mesmo às vezes, quando um não podia vir, por causa do trabalho ou algum outro contratempo, quem vinha era o outro.

Perto do final do semestre, eu soube de tudo.

Enquanto almoçávamos para ir à escola, minha irmã caiu no choro. Um choro convulsivo e incompreensível. Será que ela estava ficando doida?, pensei na mesma hora em que vi minha irmã soluçando diante de um prato de comida que ela gostava. Não fazia sentido.

Não, não estava. Eu, o futuro marido, fui o último a saber. Senti-me traído, dilacerado, acabado, mas era como se as pessoas estivessem escondendo tudo de mim deliberadamente, numa tentativa esdrúxula de me poupar de algo – quando, na verdade, o pouco que se sabia até então não me era dito porque lá em casa cada qual vivia no seu próprio mundo, e o mundo de um não se interseccionava com o do outro. Portanto, se Rafaele não era minha amiga, eu não tinha motivo pra querer saber o que quer que se passasse em sua vida particular. Nada me impedia, porém, de me sentir arrasado.

Minha mãe correu para acudir minha irmã Isabel, que a esta altura já babava com a boca cheia de comida, e dizia que não conseguia engolir o que tinha na boca, que isso e aquilo, num ataque dramático-histérico que parecia que a mãe era a dela.

Sem nada entender, olhei para a minha mãe, que conseguiu me explicar depois de limpar minha irmã e fazer com que ela trocasse a camisa da uniforme para ir à escola, que a mãe da Rafaele estava com C.A.

Eu não fazia ideia do que fosse aquilo, mas pela situação que se criara ali, não era nada bom, nada bom. E as duas, minha mãe e minha irmã, pareciam saber mais detalhes do que fosse esse tal de C.A., e do destino que aguardava quem tinha esse negócio. Perguntei a ela o que aquilo significava.

“Sua vó, Lauro, a minha mãe, morreu de C.A. também. A avó que você mal conheceu, que lhe botou no colo e disse ‘é uma pena que não vou vê-lo crescer’, morreu bem novinha também. E eu fico morrendo de pena – e nessa hora ela também não se fez de rogada e seguiu o exemplo da minha irmã, que quando viu a mãe chorar voltou a fazer o mesmo – que a Rafaele vá ficar sem mãe tão cedo. Não é justo, meu Deus, não é justo!” – disse, chorando.

Meu coração parou de bater por alguns segundos. Eu estava perplexo. Depois de ver toda aquela cena, ainda ser informado de que a mulher da minha vida morreria. Eu mal conseguia conceber tudo aquilo. Aliás, eu não conseguia de jeito nenhum. E minha reação ao lidar com algo que não posso compreender era aos 11, como é até hoje, parar com cara de estupefação, para só depois do que parecem longas conjeturas, agir. Mas eu não consegui. Naquele dia, eu tive a certeza de que jamais veria a mãe de Rafaele novamente.

E de fato, nunca mais a vi. Soube, anos depois, que o pai de Rafaele se divorciou dela no ápice do tratamento contra o câncer. Sem condições de cuidar da filha e com vergonha de si mesma por ter sido mutilada ao retirar as mamas, numa época em que reconstruí-las custava muito dinheiro, e dinheiro esse que ela não tinha, Rafaele foi deixada com os avós maternos, que cuidavam dela como se filha fosse, enquanto esses mesmos avós tinham que lidar com a certeza cada vez mais premente da perda da própria filha.

Por fim, ela morreu. Dali em diante, Rafaele se transformou em mulher. Ninguém passa incólume a uma perda tão precoce, e não foi diferente com ela. Porque minha irmã ainda tinha mãe e não amadureceu tão rapidamente, as duas seguiram caminhos distintos, assim como eu, viúvo de um amor que não pôde ser concebido.

Cresci com a certeza de haver aprendido, com aquele episódio, muito mais sobre o amor e a morte do que poderia aprender se a vida tivesse me ensinado aos poucos. Aprendi outras coisas também. Eu não conseguia entender como alguém poderia ser tão pouco humano como foi o pai de Rafaele. Compreendi que eu jamais abandonaria um amor. E que se a vida, o amor e a morte são todos fatores profundamente interligados, entendi também que quem não consegue lidar com a grandiosidade desses três, só entende de coisas desnecessárias.