10 de setembro de 2014

Lagarta de fogo

Certo dia eu caminhava por uma calçada mal feita, esburacada, numa rua sem graça que visitara algumas vezes. Era quase meio dia, pois o sol a pino brilhava debaixo do meu queixo – e aquela luz me incomodava, prefiro sombras. A rua parecia um deserto em todos os seus aspectos, na quentura, no espalhar da areia pelo vento, na solidão. Avistei, em outra calçada feia, uma menininha magra, de cara chupada, braços finos e blusinha suja e de alça caída. Ela estava acocorada ao pé do portão de uma casa que imaginei ser a sua, e cutucava com um palito de dente algo que se movia no chão. Sei que este algo se movia por dois motivos: ela, a menina, não descia a mão das agulhadas mortais em um ponto fixo, além do quê, a sensibilidade de ouvir as últimas súplicas de tudo que respira me é comum.

Curiosa que sou, aproximei-me e juro, não minto, ouvi uns risinhos na prática da maldade. Poucas vezes presenciei uma cena tão cruel, tão horrenda euforia na retirada de uma vida. A menina, que era um pedacinho de gente, tinha brilho nos olhos ao enfiar violentamente o palito de dentes em uma formosa lagarta de fogo, que se retorcia e gemia [gemidos de bicho] a cada espetada que recebia. A menina, que era perversa e magra de ruim, tinha como objetivo perfurar toda a lagarta de fogo, e, confesso, sua alegria por estar tão perto de tal feito era tamanha que me contagiou. Parecia haver uma maldade naquela menina que ela tinha facilidade em acessar. Ainda com muita pena da pobre lagarta, eu agora queria apenas ver seus pedaços espalhados pela calçada, e amiudei os olhos para ver a mutilação com maior nitidez.

Quando dei por mim, Eu, que sou Senhora tão reservada e silenciosa, pulava em euforia ao redor da menina, que nem parecia assim tão ossuda e perversa, e seu rostinho pueril até era cheinho de carnes. Ela, repentinamente, ficou de pé e, com os bracinhos levantados, gritava: “Yes, yes, yes!” E quando olhei para seus pés, que obra de arte! A lagarta estava bem dividida em doze pedacinhos miúdos, e seu sangue – verde - espalhava-se por um pedaço da calçada, uma das cenas mais lindas que vi em minha longa trajetória de vida. Eu estava plena de gozo, extasiada em meus negros véus. Cheguei atrás da menina linda, a qual eu admirava agora e já não queria mais apenas como conhecida, queria aquela pequena como minha amiga, e alisei seus cabelos [que não eram lisos] e ela então começava a notar minha presença.

Notei os pelinhos loiros dos seus braços levantados, e ela passava a mão na tentativa de acalmá-los, e Eu, na tentativa de ajudá-la, apenas fazia com que a intensidade dos calafrios [pois dizem que é isso que se sente quando estou por perto] aumentava. Percebi que minha magrelinha tinha pressa – decerto para andar de mãos dadas comigo. Apressei-me também. Girei a cabeça e vi, num quarteirão próximo, um motorista conduzindo um enorme caminhão de lixo. Inclinei-me em seus ouvidos e sussurrei: “você me conhece?” Ele, o motorista, então fez uma curva brusca e entrou a toda velocidade na rua deserta, na qual acabara de acontecer a atrocidade artística da lagarta de fogo. Segurei firme na mão da minha mais nova amiga e companheira, soprei uma lágrima que descia pelo seu rosto ossudo e bem corado; de bochechas cheinhas e quase perfuradas. Eu pulava em euforia, ela nem tanto. O caminhão se aproximava a 130 por hora, soprou uma suave brisa gélida ao sol do meio-dia, atravessamos a rua de mãos dadas, consciente e inconscientemente.

Horas mais tarde voltamos para brincar sobre o caminhão virado, ao som de choros e gemidos arrastados, enquanto separavam o lixo podre da carne pueril esfacelada, e passeávamos entre o ajuntado de pessoas que se reunia para entender o caso. Minha última observação, naquele dia, foi marcante: já era noite quando os pedaços da lagarta de fogo ainda continuavam intactos na calçada morna.