25 de fevereiro de 2014

Vário som, de Elisa Andrade Buzzo


Li, pela segunda vez, o livro de Elisa Andrade Buzzo por esses dias e novamente eu não sabia se poderia escrever sobre ele. Quando da primeira vez, em frente ao computador, não consegui passar das duas primeiras linhas. Porque, para a minha infelicidade, fui ler o posfácio antes de pensar mais sobre o livro. Não costumo fazer isso, porque é fato que em mim as impressões dos outros ficam. E fiquei a querer dissipar a ideia dos labirintos que Andréa Catrópa escreveu. Percebi também que os poemas, a maioria, que ela havia apontado, eu já havia separado para comentar no que seria a resenha sobre o Vário som. E talvez por isso, divagando, fiquei à deriva, esperando o vento que não vinha, a inspiração que não vinha, para resenhar um dos melhores livros de poesia que li ano passado, talvez o melhor entre os autores estreantes.

Quando comecei a ler, perdi-me, um pouco, entre os versos que se quebravam diante da leitura mental. Mas aos poucos peguei o fôlego dos poemas e pus a pontuar o que não existia para poder compreender um pouco melhor os poemas e me sentir pronto para a entrega da cavalgada que traziam-me os poemas:

“(...) entregas tudo o que
tens diante do mistério insone de um olho
na escuridão"

E é cavalgando que aos poucos me aprofundo na minha perda. De repente se está a ver os muros de uma cidade que se constrói entre os lençóis que estão entre as nossas pernas e tudo, até então, é permeado de amor. Como não poderia ser?

"da boate no cais
só me restam as frequências
mais duras o cheiro de urina e o álcool que se
destila isso porque são as notas mais graves
que sobem a conversa aguda se dissipa penso
em descer e pertencer a este outro mundo sub-
terrâneo e os lençóis me enlaçam as pernas
chego a sentir o gosto de bebida inundando a
cama até que amanhece no pesadelo dos meus
desejos tal simplicidade musical embala o
sono esse grito infantil e trágico de que é feito
o amor"

E daí, entre saber o que é e o que não é, faz-se os entrecruzamentos arredios que levam, talvez, para os fadados labirintos que se constroem em nosso imaginário quando estamos presos à solidão, quando estamos aptos a não nos encontrar tão facilmente, mesmo que ao nosso redor todos gritem por nós:

"no cruzamento do mundo
existe um rumor
metálico esteiras paralelepípedos gastos fios
nervos bólidos espaciais o contato raivoso
entre o trilho e o eléctrico despojos é lá que
alguma coisa se parte enquanto outra toma
corpo que daí nasça a flor a náusea o novo

E enquanto isso a cidade vai vivendo como se tudo continuasse como antes
meus vizinhos do quarto andar
colocaram
cadeiras na varanda abro a janela com
remelas de onde se vê uma paisagem colorida
de prédios um sino um céu de brigadeiro
trinta graus a praça do município resplandece
e o verão ainda nem deu as caras meu contato
com o mundo é mais terra a terra fito os cascais
do trottoir"

Parece que a cidade não sente a dor, o vário som que se dissipa apaga as solidões.

"e existe algum problema
em não fazer algo mas
de longe imaginá-lo como a premeditar o ato
esta música que vem da praça de são paulo é
tocada e cantada por alguém"

E o que mais se necessita à alma desse eu-lírico ter algo que o mantenha firme, que entre “raviólis de requeijão sumo de limão” haja também leituras que tentem nos salvar ao invés de nos afogar como sophia de mello breyner, fernando pessoa ou camilo pessanha. Mas é fato que o tombo pressentido esteja rente ao chão para que seja possível deixar a ausência de lado, para que as palavras junto aos alimentos sejam a corda da salvação:

"preciso de conteúdo
sólido chão evidente tombo pressentido crumble
aux pommes camões mascarpone para driblar o
esgar da ausência e não deitá-los fora que ve-
nham em torrente os alimentos as palavras e os
tormentos"

Parece-me que aos poucos a poeta foi construindo uma teia de retalhos da lembrança, onde tudo que vivenciou fora destacado entremeios a dispersão das palavras e dos momentos vividos.

"mesmo é como se
aprendessem a ser outros e já não pudessem
ser mais ninguém

tenho dificuldades de comunicação
então preciso
de gente que fale e de preferência que não fale
do meu mundo desgastado preciso de gente que
me faça abrir a boca de tanto que gosto de vê-la
falar nos entredentes de outros fatos complica-
dos e ardentes do jogo de perguntas e respostas
nascente assim eu diga que preciso de outros
mundos que estes tomem corpo e me sustentem


aqui neste lugar de vário som de tudo se é capaz"