7 de fevereiro de 2014

Culpa

Blossom of pain, by Edvard Munch 

Se ela não tivesse visto o que viu talvez estivesse viva aqui conosco comigo Se ao menos tivesse fugido quando a vi, resistido, dito que não tinha visto ou escutado; que não era ela que era outra que não estava ali ou era engano Se ela erguesse a mão esbofeteasse o meu rosto recobrasse meu bom senso para não contrariá-la, não questioná-la ou argumentar contra o que parecia verdade. Ela era importante para mim e para as crianças, mesmo que mortas. Por que ela não fugiu? O que ela queria? Eu nunca tive juízo nunca Ela sabia muito bem que casou com um homem sem miolo nenhum Se ela tivesse fugido ou distraída não espiasse pelas frestas da parede de tapume e não ficasse atenta ao que não lhe dizia respeito.

Ela se disse magnetizada hipnotizada imantada à cena grudada ao que via ouvia. Nojo, revolta, desprezo, amor, ela não sabia o que sentia e não decidia pelo quê O olho arregalado, a fresta, os pés pesados, a respiração intranqüila. Os meninos, todos mortos, arrumados sobre a cama como que dormindo e o menor de colo deitado no berço chorava Irritado quis calá-lo Não consegui Esganei o coitado Ela não conseguiu tirar os pés do chão correr de tão pesados Filhos? Eu não queria filhos. Atrapalham. Ela não me ouviu Sou um sujeito sem paciência sem muito jeito Sozinho e silencioso Quando engravidou do primeiro, pedi: tira Ela disse ser contra as leis de Deus. Parava pouco em casa, dirigia caminhão, não era problema. O garoto era bonito, parecia comigo. A convivência só prestava quando ele estava quieto. Ele chorava e ela corria para ver o que estava acontecendo: se sujo ou com fome. Chorava apenas por essas duas coisas.

Eu a via uma vez ou outra, o resto do tempo na estrada e o garoto cresceu. Os outros três, com uma história muito parecida. Juntava dinheiro para comprar uma casa mudar sair daquele fim de mundo dar uma vida melhor a ela quando engravidou do segundo filho pedi para tirá-lo ela se recusou mais uma vez Eu argumentei que a vida ficaria mais difícil Ela disse não se pode contrariar as leis de Deus Perguntei se Deus pagava as contas da casa? Se Ele colocava comida à mesa? Ela pare de blasfemar, homem Não me contive e dei nela com a correia da calça para ela aprender que Deus não tinha nada com a minha vida. Ela me pedia piedade, piedade. Disse a ela, chama por seu Deus, vê se Ele vem tomar a surra por você. Pare de blasfemar, homem. Me bata e não blasfeme. Batia para ela aprender a parar de chamar por Deus, por esse sujeito intrometido que impedia de ela tirar os filhos, porque tinha lá as suas leis que não significavam nada para mim. Toda marcada, ela voltou para a cozinha sem dar um pio, sem nem mesmo praguejar ou me ameaçar de polícia ou envenenamento. O filho vai mudar você, homem, advertia enquanto me servia um prato de comida. Parece tão esperto para as outras coisas, ela pontuava, e não gosta dos próprios filhos.

Não gosto de filhos, nunca tive vontade de tê-los O mais velho não conversava muito, parecido mesmo comigo. Comia a pouca comida, calado. O mais novo, nos peitos da mãe, com o choro irritante. Vezenquando o mais velho viajava comigo, gostava dele. Era quieto, falava pouco -, só o necessário. Se ela não tivesse visto o que viu a gente podia sair por aquela porta passear tomar um sorvete ir ao cinema namorar ir para um hotel e tudo seria tão diferente... Perguntei a ela o que você viu? Nada. Nada? Ela tremia. Não vi nada E os seus filhos? Você não os botou para dormir? Estão dormindo, sim Os três e o menor Eu sei, homem, eu sei Sabe mesmo? Sim Vá se lavar a gente vai sair Não tô com vontade de sair Não tá? O resto do dia está livre E a gente vai sair Tá bem, vou me lavar Ela foi tomar a chuveirada no banheiro atrás da casa, tirou o vestido florido, pendurou em uma das paredes improvisadas Lavou a longa cabeleira enegrecida Parecia mais jovem quando se banhava. Ficava outra mulher. Tranquei a porta de casa, não sem antes tirar de lá uma trouxa de roupa. Ela tomava um banho demorado. Talvez o medo, talvez. O tempo todo eu parado olhando ela pelada pisando sobre as tábuas - a água do banho empoçando - a espuma do sabonete escorrida por entre o capim Fechou o chuveiro A água fria parecia tê-la feito recobrar a calma.

Recomposta pediu as roupas Escolheu meu vestido, é? Quanto tempo você não me escolhe roupa Eu ri, alisei minha barba, olhei aquela bunda bonita sumir dentro do tecido A casa ficará trancada. Os meninos não vão ter necessidade Ela não discutiu Penteou-se diante de um caco de espelho preso a parede dos fundos da casa Se ela ao menos tivesse fugido Não fugiu Agia naturalmente Cadê o perfume? Não precisa de perfume nenhum Tinha esquecido a colônia que dei para ela de presente de aniversário O cheiro era bom Eu gostava Gosto de cheiro de mulher, despistei assim, ela olhou para trás com aqueles olhos que o meu filho caçula parecia ter herdado Não tá demorando demais não? Calma, se tá tudo bem, por que a pressa? As crianças dormindo. A noite é nossa Se ela me esbofeteasse para recobrar o bom senso se tivesse interferido Eu nunca tive juízo nunca Passou pela estrada um caminhão anunciando na agremiação a festa da noite É lá que nós vamos? Sim. Sem calcinha sem sutiã com uma sandália de salto vestido leve Os seios espetavam o tecido Era uma boa mulher, apesar dos filhos todos. Me esforcei para estragá-la Não consegui.

Parece uma menininha, aquela que conheci na estrada, em minha primeira viagem Cobrava pouco mais de trinta reais para se deitar num colchão à beira da estrada no meio do mato para o amor apressado Parecia, mais uma vez, aquela menina: Sonho em ser mãe Eu não gosto de crianças Você não tem um, quando tiver... Deus não vai me castigar dessa maneira Criança não é castigo Apaguei as luzes, peguei a bicicleta. Ela na garupa Os seios roçavam às minhas costas, agarrava a minha cintura O mais velho me voltava ao pensamento: ele parecia mesmo comigo. Ela perguntou o que deu em mim Vontade de ficar sozinho com você. Sozinho com você e com o mundo. Por que não me pediu isso antes? Você ocupada com os filhos: eles em primeiro lugar. Não podia montar em você: A, B , C ou estavam acordados ou não tinham jantado ou não estavam limpos. Agora a gente tá aqui. É, a gente tá aqui.

O caminhão na revisão. A semana inteira ouvindo toda a gritaria das crianças toda exigência estúpida Com o caminhão no conserto, podia fazer muito pouco, não podia ir para longe, vê-los apenas de vez em quando, igual sempre fiz Estavam com a mãe, eu pensava, ou pior: não são meus filhos. Pior não, melhor. Meus filhos eram aqueles quatro – silenciosos - envolvidos na escuridão do cômodo, sem a requisição constante do pai ou da mãe Os quatro dormindo profundamente sob a chama da lamparina de querosene, no único cômodo, imóveis, obedientes ao silêncio respeitoso do pai e de suas necessidades de homem eram os meus filhos O bando ruidoso deprimente, não

 Ela grudada às minhas costas Passei do clube dançante pedalei para longe das poucas luzes do lugar A estrada se tornou difícil Dócil ela levantou-se da garupa da bicicleta caminhou ao meu lado no trecho da via. Era uma estrada secundária passavam poucos veículos. Os motoristas não estranhavam em nos ver caminhando pelo acostamento Havia uma ou outra casa por perto Os faróis a assustavam. A noite, não. A gente chega já, já, falei olhando para o rosto dela na escuridão Pareceu concordar Passei a mão em sua silhueta, puxando-a para perto de mim Ela não resistiu Não reclamou feito das outras vezes não disse olhe as crianças, homem Controle-se O mais velho era mesmo parecido comigo talvez eu tivesse gostado dele

Caminhamos por mais uns cem metros, apareciam pontos de prostituição. Várias mulheres na beira da estrada, iluminadas pelos faróis dos poucos veículos. Sem eles, sombras recortadas contra o fundo da noite, sem identidade. Parei perto de uma delas Programa, moço? Pra dois é mais caro Não quero sem vergonhice Quanto você quer para ir embora daqui, arrumar outro ponto? O quê? Perguntei o quanto você quer para sumir, está surda? A putinha não gostou nada do que ouviu, reagiu aos gritos, quando a esmurrei e ela para não cair agarrou-se às minhas pernas Mais uma vez a golpeei. A putinha caída, quieta. Falei para minha mulher tomar conta da bicicleta. Removi o corpo magro da prostituta para um lugar doutro lado da estrada, no matagal Fez um ruído seco quando a arremessei. Voltei. O colchão deve estar por perto, disse. Ela segurava o guidão da bicicleta, seguia calada pelo trecho da estrada. Um caminhão parou ao nosso lado Quanto é? Depende? Depende do quê? Você não quer conversar? O caminhoneiro desconfiado seguiu adiante.

Encontramos o lugar do colchão. Pulamos a mureta da estrada, levantei a bicicleta, coloquei-a bem perto de um galão de água e um caixote com uma garrafa térmica de café e papel higiênico e uma bacia. Ela - parada ali -, minha mulher. Não era mais uma à toa. Fiz o jogo: Quanto é, dona? Pra você é de graça Assim, não Quanto é, dona? A brutalidade da minha voz a convenceu de que eu não representava. Pelo quê? Por tudo? Você não vai ter dinheiro para pagar e levantou o vestido Joguei em cima dela todo meu dinheiro Taí, agora deita. Abre as pernas. Ela deitou-se no colchão imundo. Tá sentindo o cheiro de homem, cadela? Puxei-lhes os cabelos longos e enegrecidos. Não é por aí, não. Fica de quatro. Ela obedeceu. Empina a porra da bunda, empina. Gritei.

Ela voltou ao passado.

Passa sempre aqui? Gosta de crianças? Não, não gosto. Coincidência, eu também não. A noite coberta de estrelas, os meninos dormiam profundamente, a gente não precisava temer que acordassem. Você tem filhos? Não, nenhum. Quer filhos? Não. Você tem marido? Não. Por que não larga a vida e vem viver comigo? Os saltos do sapato espetavam a minha barriga Os mosquitos infernizavam. A lua emprestava o romantismo possível Ela levantou-se, retirou um pedaço de papel para a higiene, agarrou a minha barba e o meu cabelo, olhou fundo nos meus olhos, Você pode passar em outra hora, tô em horário de expediente. Ajeitou o vestido, andou em direção a mureta de segurança, saltou-a. Um caminhão passava. Ela suspendeu o vestido. Os faróis iluminavam-na. Quanto é? Ouvi. Observava de longe, afastado alguns metros do colchão. Me aproximei outra vez Você aqui de novo? Ela me disse Agora, chega. Sobe aí Você vem comigo Sabe, comecei, já fui casado, tive quatro filhos O que aconteceu? Morreram em um acidente Quer ouvir minha história?

por Mariel Reis