20 de janeiro de 2014

Abraham Palatnik

Em recente visita à capital federal, pude apreciar a inventidade múltipla do artista, natural de Natal, Abraham Palatnik. Pintor, escultor, fotógrafo, designer, ele defende que a função do artista é disciplinar o Caos, a arte não deve expressar nenhuma mensagem, mas tão-somente ser sentida. Para tanto, o espectador deve se permitir uma experiência estética e esta se dá por meio de uma suspensão no tempo.

Em se tratando de Palatnik, além de estética, essa suspensão é lúdica. Depois de abandonar a pintura (ainda que por um tempo), impressionado pela experiência vivida no hospital psiquiátrico Engenho de Dentro, junto da Dra. Nise da Silveira, ele entende que sua formação acadêmica já não dá conta de toda uma pulsão criativa, posta em crise, ao se deparar com tanta genialidade por parte daqueles que nunca frequentaram escolas de arte e estavam à margem da sociedade, muitos deles abandonados pela família naquela instituição.

Ela (Dra. Nise), por sua vez, vai se tornar uma das pioneiras do movimento antimanicomial no Brasil, fundando o Museu do Inconsciente, para onde são levados os trabalhos dos internos. Ele, então, resolve se dedicar a novas experimentações artísticas, voltando-se para estudos e produções que irão colocá-lo como um dos fundadores do movimento cinético ou arte cinética no Brasil, em sintonia com o que vinha sendo desenvolvido em outros países (EUA, Espanha, França, Itália...). Ao regressar de Sarajevo, onde morou, estudou e participou de mostras competitivas, ele fixará residência no Rio, cidade que abriga seu ateliê em plena atividade.

É desse ateliê que surgem os objetos que encheram meus olhos e alegraram meu coração em Brasília: os objetos cinéticos e os objetos cinecromáticos. Dispostos em molduras ou na forma de escultura, evocam telas de Juan Miró, tanto pelas formas geométricas, quanto pelo emprego de cores primárias, salvo por um dispositivo: um relógio interno que cronometra, em sequências de tempos variados, o movimento desses objetos. Trata-se de um minucioso trabalho artístico que envolve, entre outros saberes, matemática, geometria, física, estática, cinemática, mecânica, química. A engenhosidade desses mecanismos/objetos me reportaram ao premiado filme de Martin Scorsese, "A invenção de Hugo Cabret", no qual aparece a figura do autômato, que teria sido criado por Georges Meliès, cineasta do primeiro cinema francês, a quem o cineasta americano rende uma justa homenagem, transformando-o em personagem ficcional.

Tanto no filme quanto na produção de Palatnik, podemos perceber o entrecruzamento da história com a ficção, do real com o imaginário, como nos aponta Paul Ricoeur. Vivências, leituras e outras experiências estéticas são transformadas ou rememoradas no trabalho desses artistas, cujas linguagens são atravessadas por um discurso polissêmico. Relembremos o filme. Depois do incêndio que destruiu seu estúdio e boa parte dos filmes, Meliès sai de cena e cai no ostracismo, sendo considerado morto. Scorsese dará sua versão para a história, elaborando uma narrativa engenhosa, protagonizada por quem ainda guarda o encanto nos olhos: duas crianças. As múltiplas referências do diretor não só remetem a Meliès (fotografias, recortes de época, cenas de filme, como "Viagem à Lua"), mas à própria história do cinema. É o caso da estação de trem, explícita referência aos irmãos Lumière e ao primeiro filme projetado para o público de Paris (onde o filme é ambientado) daquele início de século XX. Trata-se, também, de uma metalinguagem fílmica, pois permite, ainda, que o espectador se veja ou se reconheça na tela.

É o que Christian Metz, teórico de cinema, vai chamar de "perspectiva em abismo", alusão à narrativa heráldica, tão presente em Borges, Kafka, Eco, nosso Rosa, cara também a outros cineastas, como Fellini, Wood Allen, Tarantino, Christopher Nolan, Orson Wels. Nessa elaboração do filme dentro do filme, o tempo humano se confunde com o tempo histórico que, por sua vez, torna-se ficcional.

Nas artes plásticas, outros artistas operam ou operaram com o que ora chamamos suspensão temporal. É o caso de Tomie Ohtake, Lygia Clark, uma na pintura – com suas telas imensas e cores fortes, intensas, vibrantes –, outra na escultura/instalação – deixando que, muitas vezes, o espectador/visitante complete a obra.

Na xilogravura, seja com tamanho convencional ou miniaturas, outro artista que provoca essa tensão no/do objeto com o expediente temporal é Rubem Grilo, por meio de inversões, distorções, metamorfoses. O espanto de algumas formas ou em torno de algumas delas gera incômodo, náusea, em alguns momentos; em outros, beira o risível.

Foi com espanto quase infantil que apreciei a exposição de Abraham Palatnik, no último dia 13 de julho de 2013, no CCBB de Brasília. Das pinturas a óleo, passando por objetos cinecromáticos, cuja disposição na tela cumpria um tempo programado, até os objetos cinéticos, além de telas da sua produção mais recente, que são confeccionadas, em sua maior parte, com material de sucata ou de baixo custo, cada espaço proporcionou um olhar de curiosa entrega. O efeito de luz e sombra, o reaproveitamento de serragem, por exemplo, para dar volume, o emprego de resmas de ofício cortadas sinuosamente para simular ondas, mas especialmente a engenhosidade dos objetos cinéticos me fizeram parar por alguns instantes: estes objetos dançavam diante de mim, num ritmo que me fez pensar no próprio universo. A sincronicidade perfeita, a combinação das cores, o movimento de subir e descer em tempo determinado, sem nunca provocar choque. Embora não houvesse música, aquelas esferas, fios e cilindros pareciam evocá-la em silêncio, salvo pelo roçar mecânico.

por Luciana Sousa