17 de janeiro de 2014

A escrita de Charles Bukowski

Muito já foi dito sobre Charles Bukowski, inclusive, grande parte dita por ele mesmo. Romancista, contista, poeta e com algumas incursões pelo mundo do cinema, Bukowski nasceu em Andernach, Alemanha, no ano de 1920, e adotou Los Angeles como cidade natal, apaixonado pela vida boêmia que encontrava ali. Bukowski é tido até hoje como um “beat honorário”, título que sempre recusou, pois ele mesmo afirmava que fazia questão de não participar de nenhum movimento literário. Odiava falar sobre literatura e guardava um ódio especial pelos escritores em geral, chegando até mesmo a recusar-se a falar com William Burroughs, um dos grandes escritores beats, em uma determinada ocasião, afirmando que não tinha interesse nenhum no que ele tinha a dizer. Sua escrita foi marcada por três características principais: o teor autobiográfico, a simplicidade da escrita e o ambiente underground onde eram vividas as suas estórias.

O que torna o teor autobiográfico de sua escrita atrativo em alguns aspectos, é que Bukowski, encarnado em Henry Chinaski, se torna uma espécie de “sobrevivente do cotidiano”. O escritor consegue nos mostrar o óbvio aniquilador dos nossos dias, que talvez por ser tão óbvio, sequer conseguimos enxergar. Exemplos disso são seus romances “Factótum” e “Misto Quente”, no qual é apresentada uma sequência de sua vida. Misto Quente narra o sofrimento de sua infância e juventude, vivida no período da Grande Depressão americana, atormentada pelo pai violento, uma mãe passiva, poucos ou nenhum amigo, busca por afirmação, problemas com acne e consequentemente, repúdio por parte das meninas de sua idade. Obviamente, isso não é lá tão anormal ou fora da realidade de muitos, mas o cotidiano descrito de forma tão bem humorada, clara, fria e objetiva, nos faz ver como a vida em si é quase que “kafkiana”. Factótum, por sua vez, narra a continuação da vida do seu alterego, Henry Chinaski, pulando de emprego em emprego, todos eles miseráveis, enquanto tenta sua grande chance como escritor. Nas horas vagas, bebe e transa e bebe.

A simplicidade de sua escrita já teve muitas explicações. Escrita de protesto ao rebuscamento literário, vocabulário pobre, herança beatnick, até mesmo explicações astrológicas que dizem: “Bukowski tem Vênus em Virgem, isso explica sua escrita simples e pragmática”. No entanto, o que com certeza parece ser crucial, seria a “criação” da sua “escola literária”. Charles Bukowski interessava-se por tudo e sempre leu de tudo. Ele mesmo dizia que muitas vezes, como não tinha para onde ir, passava o dia na biblioteca pública, folheando todos os tipos de livros, dos grandes romances aos livros de biologia, enquanto matava o tempo para ir ao bar à noite. Dessa vasta literatura, com certeza dois nomes se destacam: Ernest Hemingway e John Fante, sendo este último, o escritor mais influente para ele. No prefácio, escrito por Charles Bukowski, em “Pergunte ao Pó”, de John Fante, ele afirma:

Uma biblioteca era um bom lugar para se estar quando você não tinha nada para comer ou beber e a senhoria estava à procura de você e do aluguel atrasado. Na biblioteca, pelo menos, você podia usar os toaletes. Eu via um bom número de outros vagabundos ali, a maioria dormindo sobre os livros.

Eu continuava dando voltas na grande sala, tirando livros das estantes, lendo algumas linhas, algumas páginas, e depois os colocando de volta.

Então, um dia, puxei um livro e o abri, e lá estava. Fiquei parado de pé por um momento, lendo. Como um homem que encontrara ouro no lixão da cidade, levei o livro para uma mesa. As linhas rolavam facilmente através da página, havia um fluxo. Cada linha tinha sua própria energia e era seguida por outra como ela. A própria substância de cada linha dava uma forma à página, uma sensação de algo entalhado ali. E aqui, finalmente, estava um homem que não tinha medo da emoção. O humor e a dor entrelaçados a uma soberba simplicidade. O começo daquele livro foi um milagre arrebatador e enorme para mim.

Bukowski encontrou em Fante e em Hemingway a coragem e a simplicidade. John Fante, autor de “Espere a Primavera Bandini” e “Pergunte ao Pó”, é também conhecido por sua escrita simples. No seu primeiro romance, Espere a Primavera Bandini, sua narrativa é tão clara (e por que não dizer honesta?), que quase se acredita que quem o escreveu foi mesmo Arturo Bandini, a criança que protagoniza o romance. Tão objetivo que chega a ser infantil, mas nem por isso, um romance seco e pobre. Ernest Hemingway, autor de clássicos como “O Sol Também se Levanta” e “O Velho e o Mar”, também tinha preferência por uma escrita simples. O boxeador das palavras, como diria Bukowski, escrevia quase que de forma descritiva; fotografias em formas de palavras, sem muitos simbolismos, sem adornos, sem linguagem poética desnecessária, sem mensagens subliminares, apenas a estória que lhe envolve pelo simples fato de ser uma estória envolvente. A descrição é a parte que cabe ao escritor. Inclusive, Hemingway é conhecido por ter escrito o conto mais curto do mundo. A lenda diz que o escritor foi desafiado a escrever um conto com apenas seis palavras, e assim o fez.

“For sale: “Vende-se:
Baby Shoes, Sapatos de bebê
Never worn.” Nunca usados.”

O menor conto do mundo se sustenta em grande parte pela sugestão. Um casal possivelmente preocupado com sua situação financeira, a possível gravidez desejada, meses de gestação, compra do enxoval, a felicidade de um casal, até que a morte do bebê, que nunca teve a chance de usar seus sapatos, surpreende a todos. Tudo isso em apenas sei palavras. Sobre sua escrita, Hemingway afirma:

Então há outro segredo. Não há nenhum S I M B O L I S M O. O mar é o mar. O velho é um velho. O garoto é um garoto e o peixe é um peixe. O tubarão é todos os tubarões, nem melhor nem pior. Todo o simbolismo de que as pessoas falam é besteira. O que está além é o que você vê além quando compreende.”(Trecho de uma carta de Hemingway para Bernard Berenson, 1952)

Esses escritores tinham em comum uma escrita sem muitos rodeios, direto ao ponto, falando da vida comum, comum a eles inclusive, falando da dor sem medo ou embelezamento demasiado dela. Escrita crua e viva.

Por esse gosto pela objetividade, sem abrir mão da beleza, Bukowski também foi um grande poeta, considerado, inclusive, o maior poeta americano por Jean-Paul Sartre. Afirmava que não via sentido escrever grandes romances, se o essencial podia ser dito em duas ou três linhas de um poema. Seus poemas em geral, não eram tão curtos, mas é como se houvesse uma espécie de “preparação” para o leitor em sua escrita, para um êxtase final, no qual o leitor deve estar preparado. Em “O Pássaro Azul” (Blue Bird), um de seus poemas mais conhecidos, o método se repete. O poema fala sobre sua relação com um pássaro que vive em seu peito, e no qual os dois mantém uma relação de amor e ódio. O pássaro a qualquer momento podendo foder com a vida do Bukowski e este constantemente inalando fumaça de cigarro e despejando uísque no pássaro. No entanto, o clímax é quando Bukowski, em poucas linhas faz a seguinte pergunta:

E isto é bom o suficiente para
Fazer um homem
Chorar, mas eu não
Choro, e
Você?

Admito que muitas vezes quase chorei. São as poucas linhas que dizem mais que um romance.

Por último, falar do cenário de suas estórias é falar basicamente de três coisas: bares, corrida de cavalos e Los Angeles. Vários temas permeiam a escrita de Charles Bukowski: apostas, brigas, os falidos do mundo em geral, mulheres, bebida, sexo, drogas e música clássica. No entanto, o que surpreende nas suas narrativas, é que ele consegue tratar de quase tudo no mesmo cenário underground: as ruas de Los Angeles. Quase toda sua obra gira em torno de fazer apostas nas corridas de cavalos, fugir dos ladrões nos hipódromos, brigar em bares, beber em bares, viver em bares e, até mesmo, transar em bares. Tudo isso, sem precisar sair de sua terra adotiva.

Bukowski soube como ninguém dar visibilidade ao submundo, aos esquecidos, e fez dos losers da sua realidade, verdadeiros heróis e anti-heróis. O herói de Bukowski não é somente aquele que vence uma luta travada no bar e como prêmio recebe os agrados de uma prostituta ou uma bebida de graça. O herói de Bukowski é também aquele que passa três ou quatro dias sem comer, é aquele que dorme na praça, é aquele que vive com um dólar por dia e é aquele que foge da senhoria, para não pagar a pensão. A saga heroica de seus personagens começa em L.A, termina em L.A, com pouco ou nenhum dinheiro, com pouquíssimas refeições, sapatos velhos, vinho barato e um maço de cigarros. No máximo, o grande herói de Bukowski tem como prêmio sobreviver o cotidiano, e ganhar dois dólares por hora de trabalho. Bukowski era um escritor que, munido de sarcasmo, coragem e sinceridade, escrevia a vida como ela é, sem enfeites, ainda que para isso, fosse preciso estar constantemente embriagado.