5 de janeiro de 2014

Quem os deuses amam morre jovem

A intenção de Benjamin era renunciar a toda a interpretação manifesta, fazendo com que as significações se impusessem apenas através da contrastada montage do material. (...) Para coroar o anti-subjectivismo, toda a obra tinha de constar de citações.

(Theodor W. Adorno, «Caracterização de Walter Benjamin», 1955: 23)
Por muito benjaminiana que esta concepção possa parecer, o editor está persuadido de que Benjamin não tinha intenção de proceder assim. Nenhuma carta corrobora esta afirmação e as duas notas das próprias Passagens(...) em que Adorno se apoia dificilmente podem ser interpretadas neste sentido.
(Rolf Tiedemann, «Introdução» a Walter Benjamin, Paris, Capital do Século XX. O Livro das Passagens, 1989: 12n)
 

Quem os deuses amam morre jovem.

(Menandro, Duplo Engano, s/d: 114)
 
 
Morre jovem o que os Deuses amam, é um preceito da sabedoria antiga. E por certo a imaginação, que figura novos mundos, e a arte, que em obras os finge são os sinais notáveis desse amor divino. Não concedem os Deuses esses dons para que sejamos felizes, senão para que sejamos seus pares. Quem ama ama só o igual, porque o faz igual com amá-lo. Como porém o homem não pode ser igual dos Deuses, pois o Destino os separou, não corre homem nem se alteia deus pelo amor divino: estagna só deus fingido, doente da sua ficção.
(Fernando Pessoa, «Mário de Sá-Carneiro», 1924: 227)
 
«Morrem jovens os que os deuses amam», dizia o poeta.
E eu pergunto: morrem velhos os que eles detestam?
(Jorge de Sena, Peregrinatio ad Loca Infecta, 1969: 55)
Os deuses não amam os que morrem jovens,
eclipsam-se na sua negação inumana.
(Luís Quintais, Depois da Música, 2013: 34)
 
 
Chamaram-no os Deuses, ainda tão novo
(Fernando Pessoa / Ricardo Reis, Prosa, 2003: 146)
A verdadeira pontualidade é morrer antes da idade.
(José Maria Vieira Mendes, A Minha Mulher, 2007: 191)
Queríamos morrer juntos,
no mesmo dia
e à mesma hora,
mas a morte quere-nos aos poucos,
quere-nos da igual maneira
como viemos ao mundo.
Um,
por
um.
(Eduardo White, O País de Mim, 1989: 64)
Repare-se: trazia dentro de si uma morte.
 
Por isso ele morreu uma morte difícil,
a morte dele, como todos morrem
de terem tido uma morte deles. O mais
 
difícil da vida é, medito enquanto leio,
encontrar, sem vacilação, a minha
morte intransmissível, pura
 
de ser o menos que em mim sou.
(Luís Adriano Carlos, O Suicida Aprendiz, 2001: 30)
Todavia a morte é algo que é feito; como morre um homem?
Todavia alguém ganha a sua morte, a sua própria morte, que não pertence a nenhum outro
e este jogo é a vida.
(Yorgos Seferis, Diário de Bordo, 1940: 89)
 
 
É um mal morrer e os deuses bem o sabem;
se assim não fora, eles próprios morreriam.
(Safo, Poemas e Fragmentos de Safo, s/d: 80)
 
Ninguém morre
como se chegasse
ao fim da vida
A morte é sempre um corte
extemporâneo
(António Ramos Rosa, Em Torno do Imponderável, 2012: 23)
Eu tenho para mim que os dias
do homem estão contados
por um analfabeto.
(José Miguel Silva, Serém, 24 de Março, 2011: 16)
morremos como os cães, tudo o que está vivo morre da mesma maneira, toda a morte é uma imperfeição que nos acolhe, com o seu vagar meticuloso, perto dela esquecemos os nomes da salvação, o de Deus, os do amor, os da ira, os livros afastam-se e os autores escondem-se, as palavras ajudam-nos a viver, mesmo a viver a morte, mas não a morrer
(Rui Nunes, A Boca na Cinza, 2003: 101)
 
 
 
Uma pessoa que já só tem vinte e quatro horas de vida deveria ter imensas coisas para fazer, mas eu não conseguia lembrar-me de uma única.
(Haruki Murakami, O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, 1985: 326)
 
Agora, pelo contrário, se a minha idade continuar a prolongar-se, sei que será necessário que sofra as consequências da velhice: ver pior, ouvir menos, ser mais lento a aprender e mais esquecido do que aprendi. Ora, se tiver esta percepção de que me tornarei mais fraco – continuava Sócrates – e tiver de me censurar a mim mesmo, como é que poderei continuar a viver com gosto? Mas talvez o deus – dizia ainda –, na sua benevolência, me esteja a facultar não só o momento mais agradável, na minha idade, para dar por concluída a minha vida, como também a morte mais fácil.
(Xenofonte, Apologia de Sócrates, s/d: 102-3)
Depois disso, nada igualou a paz e a serenidade dos seus últimos dias, tanto mais que, por especial e extraordinária concessão do eleitor, foi o cárcere onde se encontrava aberto de modo a permitir que os muitos amigos que tinha na cidade o visitassem livremente de dia ou de noite.
(Heinrich von Kleist, Michael Kohlhaas, o Rebelde, 1885: 148)
Depois, quando os companheiros quiseram tirá-lo da cadeia às escondidas, não o consentiu, e até pareceu zombar deles ao perguntar-lhes se conheciam algum lugar fora da Ática que não estivesse ao alcance da morte.
(Xenofonte, Apologia de Sócrates, s/d: 109)
– Mas onde encontraremos, Sócrates – replicou ele –, um virtuoso esconjurador de tais medos, posto tu nos vais deixar?
– A Hélade é grande, Cebes, e nela há muitos homens bons; e além disso, são muitas as nações dos povos bárbaros. (...) Mas é preciso procurar também entre vós, pois talvez não encontreis homem mais hábil para pronunciar esses esconjuros do que vós.
(Platão, Fédon, s/d: 83)
 
 
 
– Em realidade portanto, os verdadeiros filósofos, Símias, exercitam-se em morrer
(Platão, Fédon, s/d: 55)
Só os imbecis, pela raiva, desejam a imortalidade.
(Heliodoro Baptista, Nos Joelhos do Silêncio, 2005: 51)
 
experimentei estranhas emoções ao encontrar-me ali. Não me invadiu um sentimento de piedade como poderia naturalmente ter ao assistir à morte de um amigo íntimo; pois ele parecia-me um homem feliz, Equécrates: feliz tanto pelo procedimento como pelas suas palavras, indo ao encontro da morte com tanta coragem e serenidade.
(Platão, Fédon, s/d: 32)
o próprio Billy falava livremente da morte próxima, mas da mesma maneira como as crianças geralmente se referem à morte, chegando a brincar aos funerais com esquife e cortejo fúnebre.
(Herman Melville, Billy Budd, 1891: 113)
no fundo, ninguém acredita na sua própria morte ou, o que é a mesma coisa, no inconsciente, cada qual está convencido da sua imortalidade.
(Sigmund Freud, «Considerações actuais sobre a guerra e a morte», 1915: 39)
 
era como se ficássemos privados de um pai e vivêssemos como órfãos o resto da nossa vida.
(Platão, Fédon, s/d: 168)
Nos meus livros, tratava-se de ti, não fazia mais do que lastimar-me daquilo que não podia lamentar sobre o teu peito. Era um adeus que te dizia, um adeus intencionalmente arrastado em duração, mas que, se me era imposto por ti, se realizava num sentido determinado por mim.
(Franz Kafka, Carta ao Pai, 1919: 49)
 
 
 
Estou doente e vou morrer; mas morro feliz porque me vieste dizer adeus.
(Angela Carter, O Quarto dos Horrores, 1979: 69)
 
Ninguém chorou a sua morte; ninguém estava ao lado, para além da figura vulgar do comissário da polícia do bairro e do indiferente médico municipal.
(Nikolai Gogol, «Avenida Névski», 1834: 123)
Em todo o caso, foi uma das angústias da minha vida – das angústias reais em meio de tantas que têm sido fictícias – que Caeiro morresse sem eu estar ao pé dele. Isto é estúpido mas humano, e é assim.
Eu estava em Inglaterra. O próprio Ricardo Reis não estava em Lisboa; estava de volta no Brasil. Estava o Fernando Pessoa, mas é como se não estivesse.
(Fernando Pessoa / Álvaro de Campos, «Notas para a recordação do meu mestre Caeiro», 1931: 46)
Equécrates Quem eram, Fédon, os que estavam presentes?
Fédon Dos Atenienses estavam esse Apolodoro, Critóbulo e seu pai, e também Hermógenes, Epígenes, Ésquines e Antístenes; também estava Ctesipo, o de Peanea e Menéxeno e mais alguns atenienses. Platão, julgo que estava doente.
(Platão, Fédon, s/d: 33)
Então todos os discípulos O abandonaram e fugiram.
(Evangelho segundo S. Mateus, 26: 56)
João, contudo, declara ter estado presente e ter permanecido sempre ao pé junto da cruz.
(Ernest Renan, Vida de Jesus, 1863: 382)
Fugis de mim? Tendes medo?
(Friedrich Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, III, 1884: 240)
 
No momento da morte de Edmund Husserl, em Abril de 1938, Heidegger «estava doente de cama.» De modo chocante, no seu protocolo de desnazificação, de 1945, Heidegger exprime remorsos por não ter enviado à viúva uma carta de condolências.
(George Steiner, As Lições dos Mestres, 2003: 74)
 
 
 
E assim acaba o mundo
(T. S. Eliot, Os Homens Vazios, 1925: 41)
 
Vamos, Críton, obedeçamos-lhe, e tragam o veneno, se já está preparado; se não, que o preparem.
(Platão, Fédon, s/d: 169)
Às oito veio José Maria com a notícia, quase sem rodeios disse-me que Celina acabava de morrer. Recordo-me de que reparei instantaneamente na frase. Celina acabando de morrer, um pouco como se fosse ela que tivesse decidido o momento em que isso devia acontecer.
(Julio Cortázar, Bestiário, 1951: 107)
 
E assim acaba o mundo
(T. S. Eliot, Os Homens Vazios, 1925: 41)
 
Com quanta serenidade, Equécrates, sem uma tremura, sem uma alteração, nem na cor do rosto, nem na expressão, mas encarando o homem com o seu olhar fixo, como costumava, perguntou:
– Diz-me, fazer uma libação desta bebida a alguma divindade, é ou não permitido?
– Preparámos apenas, Sócrates – disse – a quantidade que cremos ser conveniente beber.
– Compreendo, – respondeu ele – mas ao menos é permitido, e é mesmo um dever dirigir uma prece aos deuses, para o feliz sucesso desta mudança de residência, daqui para o Além. Esta é pois a minha prece: que assim seja!
(Platão, Fédon, s/d: 171)
eu muitas vezes pergunto a eles ateus ou como quer que eles se chamem que vão de lavar do ranço deles primeiro depois tocam a gemer por um padre porque estão morrendo e por que por que porque ficam com medo do inferno por causa da má consciência deles ah sim eu conheço eles bem quem foi a primeira pessoa no universo antes que tivesse ninguém que fez tudo quem ah isso eles não sabem
(James Joyce, Ulisses, 1922: 550)
 
E assim acaba o mundo
(T. S. Eliot, Os Homens Vazios, 1925: 41)
 
disse estas palavras, as últimas que pronunciou:
– Críton, devemos um galo a Asclépio. Paga esta dívida e não te descuides.
(Platão, Fédon, s/d: 172)
É sinistro! Sempre gostava de saber que palavras disseram antes de acabar...
– Quem? O Wiseman e o Wishart? Com certeza uma patacoada qualquer. É o género de conversa que imaginamos de uma forma e depois sai de outra. Talvez o Wiseman tenha dito: «Passa daí o gin, meu velho, que eu estou sem saber de que terra sou.» E talvez o Wishart tenha respondido: «Oh, que raio de inferno...»
– Só isso chega para ser sinistro.
(Robert Louis Stevenson, No Vazio da Onda. Trio e quarteto, 1894: 44)
 
E assim acaba o mundo
E assim acaba o mundo
E assim acaba o mundo
Não com uma explosão mas com um soluço.
 
(T. S. Eliot, Os Homens Vazios, 1925: 41)
 
 
 
 
 
 
 
de cada vez insubstituivelmente, de cada vez infinitamente, a morte
(Jacques Derrida, Carneiros / Aríetes. O diálogo ininterrupto: entre dois infinitos, o poema, 2003: 23)
 
Como morre um homem? Estranho ninguém reflectiu nisso.
(...)
Lembrávamo-nos de mestres anciãos que nos deixaram órfãos.
Um casal passou a conversar:
«Fartei-me do crepúsculo, vamos para casa
vamos para casa acender a luz.»
(Yorgos Seferis, Diário de Bordo, 1940: 89)
 
de cada vez, e de cada vez singularmente, de cada vez insubstituivelmente, de cada vez infinitamente, a morte é nada menos do que um fim do mundo. Não apenas um fim entre outros, um fim de alguém ou de alguma coisa no mundo, o fim de uma vida ou de um ser vivo. A morte não põe um termo a alguém no mundo, nem a um mundo entre outros, ela marca de cada vez, de cada vez a desafiar a aritmética o absoluto fim do único e mesmo mundo, daquilo que cada qual abre com um único e mesmo mundo, o fim do único mundo, o fim da totalidade daquilo que é ou que se pode apresentar como a origem do mundo para certo e único ser vivo
(Jacques Derrida, Carneiros / Aríetes, 2003: 23)
Cada um é tudo para si mesmo, porque, ao morrer, tudo morre para ele. E daí vem que cada um cuide ser tudo para todos.
(Blaise Pascal, Pensamentos Escolhidos, s/d: 41)
 
O que é o «sentido da vida»? É uma coisa que só podemos captar nas vidas dos outros que, por serem objecto de narração, se nos apresentam como consumadas, seladas pela morte.
(Ítalo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milénio, 1990: 157)
Nunca desistimos de esperar que comece a verdadeira história, porque a única história verdadeira é, afinal de contas, a morte.
(Jonathan Franzen, A Zona de Desconforto. Uma história pessoal, 2006: 136)
Pedro Eiras

Desde 2001, publicou diversas obras de ficção (Estiletes, Os Três Desejos de Octávio C., A Cura), teatro (Antes dos Lagartos, Um Forte Cheiro a Maçã, Uma Carta a Cassandra, Um Punhado de Terra, Bela Dona), ensaio (Esquecer Fausto, A Lenta Volúpia de Cair, Tentações, Um Certo Pudor Tardio), crónica (Boomerang, Substâncias Perigosas) e outros textos mais difíceis de classificar. No Brasil publicou Os Três Desejos de Octávio C., Um Forte Cheiro a Maçã seguido de Uma Carta a Cassandra, e Substâncias Perigosas. As suas peças de teatro foram encenadas e lidas em dez países. É Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto.