19 de outubro de 2013

Deixe-me ser feliz também

isla de ninos by Graham Franciose

Às três horas, durante a madrugada, em um dos hotéis luxuosos que beiram o mar, uma mulher levanta de sua cama. O marido continua dormindo sem perceber. Ela sai do quarto deixando seus sentimentos incólumes, e as sensações mais aguçadas ainda. Chega à sala sem qualquer pensamento racional socializado. Desliza para o lado a grande porta de vidro que dá acesso a uma varanda. Sente a brisa salgada do mar bater-lhe o rosto. Fecha os olhos e caminha até a ponta. Abre-os novamente e vê as ondas da praia solitária, brincando de desmanchar-se com as rochas. Ouve uma voz serena, feminina e, aparentemente, submersa chamar-lhe. Ela diz que vai. Abre os braços e, lentamente, inclina-se para frente com a intenção de entregar-se à gravidade e sentir a areia úmida que tanto insiste em separar o mar do resto da cidade. — Falta pouco para nos tornarmos um só. — Diz enquanto está cada vez mais próxima de acabar com tudo que era ela mesma até aquele momento. Então é agarrada por seu esposo que a impede de realizar o salto mais libertador de sua vida. Ele puxa-a para dentro de casa, pergunta com quem ela estava falando. A moça fita-o com um olhar vazio e inerte. O homem então desliza o vidro, assim fechando a varanda. E fica a observar lá fora, ver se encontrava alguém com quem a moça pudesse estar falando. Quando se vira para levar a esposa ao quarto e indagá-la sobre o que acabou de acontecer, não a vê. Dá alguns passos, chamando-a pelo nome, e olha para o hall de entrada. Espanta-se ao ver a porta aberta. Sai do apartamento, as luzes automáticas vão acendendo. Vai em direção ao elevador cuja porta vai fechando-se, com a mulher lá dentro, virada para o espelho. Aperta o botão para chamar o outro elevador. Aperta. Aperta…

A moça passa pela portaria e sai do hotel. Descalça e com trajes de dormir, pisa na areia. Sente certa satisfação e caminha em direção ao mar. A cada pequeno golpe de ar vindo do oceano, para e aprecia-o. Sente o cheiro de maré salgada e continua. Faz isso umas três ou quatro vezes, espontaneamente, e então a água gelada do mar toca seus pés e volta de onde veio. Segue um pouco mais em frente até que as ondas toquem na altura de seus joelhos. O mar agita-se e parece ficar mais eufórico. Ela ouve a voz feminina dizer: sinta a calmaria de um mar agitado. A moça abre os braços e fica mais solta, mais leve. As ondas cada vez mais fortes crescem e desabam sobre a mulher que agora está um pouco mais ao fundo.

Grita pelo nome dela a voz do marido, longe e desesperado. Não obtendo sequer mínima resposta da esposa, corre em direção a ela. Chega e luta contra a maré que parece impedi-lo de alcançar a mulher. Quando chega perto dela, vê a mesma totalmente hipnotizada com a imensidão do oceano, dizendo para ele, e parecendo nem se importar com a fúria marítima:

— Eu sou a onda, livre a brincar. Eu sou mar furioso a se agitar. Eu sou o medo que, seus sonhos, afogará. E as lágrimas, qual sua alma limpará. Serei a brisa, leve, que te aliviará. E o céu cinza que te decepcionará. Sou o filho que ainda te abandonará. E o animal que, fiel, retornará. Eu sou mulher e me libertarei. Mas ainda acorrentada pelo amor que te entreguei.

O homem, sem entender coisa alguma, agarrou-a. Ela resistiu e ele insistiu que precisavam voltar. A moça responde com as seguintes palavras: deixe minha alma ir e se afogar, pela manhã meu corpo voltará, trazido pelas ondas do mar, e da areia quente levantar-se-á. O homem confuso afrouxou a mão e permitiu o escape dela que, antes de sair, deu-lhe um beijo. E lá foi ela, afogando-se nas águas e tornando-se parte delas enquanto o esposo voltava à praia sem entender o que aconteceu.

Pela manhã, o homem despertou com o sol invadindo o quarto e acordando-lhe com a luz. Virou-se e percebeu que a mulher não estava na cama. Foi até a cozinha e encontrou-a cozinhando e sorrindo. Ela deu-lhe um beijo e perguntou se gostaria de mais alguma coisa para o café da manhã cuja mesa já estava farta, ele sorriu e respondeu que não, afinal ela já tinha cumprido a promessa.

 

 

 

por William Gonçalves*

 

*indeciso por natureza; vegetariano às segundas-feiras; escreve por prazer e necessidade; crítico ao extremo; leitor graças ao ócio que, às vezes, invade as vidas dos mortais; e o maior fã de paçocas este mundo já viu.