30 de agosto de 2013

O Doce Veneno da Serpente

O jornalista Ricardo Kotscho, no livro Tempo de Reportagem, de Audálio Dantas, promove um desagravo: credita a invenção do novo jornalismo à imprensa brasileira, durante a década de 40, através do nome de Joel Silveira. O próprio Audálio Dantas, praticante da modalidade, aponta publicações como a revista Realidade, endosso da prática corrente desse tipo de jornalismo atribuído à influência de autores americanos do porte Norman Mailer, Truman Capote e Gay Talese.

A polêmica está instalada. Se a paternidade não pode ser reclamada e os registros alterados, resta o consolo que aos pais adotivos não faltou competência para criá-lo, educá-lo e mantê-lo como gênero. As obras produzidas por seus cultores norte-americanos representam marcos nessa espécie de narrativa. Norman Mailer, entre seus inúmeros livros, podemos destacar Miami e o cerco de Chicago sobre a prévia e a campanha que levaria Richard Nixon ao poder; Truman Capote com sua obra-prima A Sangue Frio, traduzida no Brasil por Ivan Lessa, trata sobre um brutal assassinato no Kansas; e, Gay Talese com Aos Olhos da Multidão, publicado nos anos setenta, pela editora Cultura e Expressão e reeditado pela Companhia das Letras, acrescido de outras matérias, com o título Fama e Anonimato, reúne as principais matérias do autor do célebre perfil do cantor americano Frank Sinatra.

No Brasil, o “inventor” do gênero foi Joel Silveira, sergipano radicado no Rio de Janeiro, que cobriu como repórter a Segunda Guerra Mundial. A experiência refletida no livro O Brasil na 2ª Guerra Mundial, mostra o cotidiano no front. No livro, publicado pela Ediouro, pode ser encontrado duas peças narrativas exemplares Eu vi morrer o Sargento Wolff , morto em uma patrulha na Itália e O pracinha Carlos Scliar, artista plástico gaúcho, que mantinha um caderno de desenhos onde registrava o dia a dia da campanha.

O repórter gabava-se por ter conhecido três presidentes da república: Getúlio Vargas, João Goulart (Jango) e Jânio Quadros. Os flagrantes dessas personalidades podem ser vistos através dos artigos reunidos no livro Tempo de Contar (Record) e mais recentemente em A Feijoada que Derrubou o Governo (Cia das Letras). Esteve com intelectuais, frequentemente na companhia de Graciliano Ramos, personagem que lhe rendeu histórias engraçadíssimas, entre elas a criação de um Golfo para o país ganhar importância geo-política e a da malograda tentativa literária da víbora – epíteto que o jornalista deve a Assis Chateubriand – frustrada pelo autor de São Bernardo. O registro pode ser lido em Na Fogueira: memórias ou em parte no Milésima Segunda Noite (Cia das Letras), em que os retratados não sofrem retoques. Há um curioso relato sobre o poeta João Cabral de Melo Neto.

Joel Silveira foi objeto de um documentário realizado por Geneton Moraes Neto. A gravação de Garrafas ao Mar: A Víbora manda Lembranças, deu-se, em parte, no apartamento do jornalista em Copacabana onde residia. Com a saúde fragilizada, mas com as idéias no lugar, Joel Silveira falou sobre a sua carreira, discorreu sobre assuntos polêmicos e se a acidez era sua moeda corrente quando era um jovem repórter, percebe-se que ela fora substituída por uma melancólica serenidade. Um pessimista, Joel afirmava que o Brasil era uma farsa e dava por encerrada suas ilusões democráticas. Em entrevista a Istoé Independente pode ser constatada a sua visão a respeito do país:

“O Brasil é uma farsa. É uma farsa democrática porque não é uma democracia. Não é democrático que um presidente edite todos os dias uma medida provisória. Se temos uma Constituição, obedeça. Mas como os artigos constitucionais não lhe servem, então tome medida provisória! O Lula com dois anos de governo já editou mais de 200 medidas provisórias, como fazia o Fernando Henrique Cardoso. A democracia racial é outra farsa. Quantos generais negros você conhece? Quantos negros há no Congresso? Quantos presidentes de empresas são negros? A economia também é uma farsa. Por muito tempo nos orgulhávamos de ser a oitava economia do mundo. Uma economia que só beneficia uma minoria, talvez 30 mil pessoas numa população de 180 milhões. A concentração de renda no Brasil chega a ser obscena. Nada mais cruel e sovina do que o empresariado brasileiro, o banqueiro brasileiro. De benefício ao trabalhador só dão o mínimo que a lei obriga. A elite brasileira é essencialmente míope. É como aquela frase de Luiz XIV: “Depois de mim, o dilúvio.” Não há solução enquanto não se resolver esse problema da divisão da renda, o que eu acho dificílimo porque a elite não abre mão de jeito nenhum. O povo brasileiro é passivo, não reage.”
(http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/10504_PUNHAL+DE+VIBORA?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage)

Considerado por muitos jornalistas um mestre, morreu com 89 anos, em 2007. Geneton Moraes Neto retoma a palavra para descrever a saída do corpo:

“E o agente veio. Acabo de sair da casa de Joel Silveira. Não quis ver a saída do corpo. A Santa Casa de Misericórdia avisou que o agente chegaria às duas horas. Pensei comigo: "Com a pontualidade brasileira, ele vai chegar lá para as quatro da tarde".
Engano. Nem uma hora e cinquenta e nove minutos nem duas horas e um : eram duas em ponto quando o agente apertou a campainha, no apartamento de Joel Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana.
O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti.
Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.
Desci do sexto andar. Lá embaixo, tive o gesto inútil de observar a placa da Kombi branca da Santa Casa de Misericórdia: LFR 1236. A Kombi trazia, nas laterais, o nome da Santa Casa e o telefone: 0800 257 007.
Joel tinha inveja de um personagem de Vitor Hugo que, minutos antes de ser guilhotinado, dizia, resignado, que estava pronto para a execução, mas "gostaria de ver o resto". Ou seja: o personagem gostaria de descrever a própria morte.
Que palavras Joel usaria?
Quanto a nós, discípulos e aprendizes, já não há o que fazer, além de anotar a placa da Kombi : LFR 1236, três letras e quatro números amargamente inúteis.”
(http://www.geneton.com.br/archives/000249.html)

Em meu último encontro com Joel Silveira, que sofria de uma estranha paralisia que o impedia de andar, devido ao inchaço nas pernas, ele me confidenciou:

“A unanimidade nunca esteve ao meu lado. Pratiquei outro tipo de jornalismo, daquele que vai atrás das notícias e de fatos que, potencialmente, poderiam se tornar notícias. Não ficava enfurnado na redação, apurando por telefone. E nunca me ausentei daquilo que escrevi. Isenção é uma bobagem, nunca fui, não era e não serei uma máquina para cuspir a notícia pronta, sem interferências. Talvez fosse o tipo de jornalismo da época. Talvez isso tenha me rendido um bocado de inimigos”

Encerrava com voz gutural a peroração, palavra de que tanto gostava. Outra era acendrado. E pontificava:

“Por que o medo das palavras?”
A discussão se embrenhava aos meandros modernistas. Os impropérios desferidos desancavam o principal mentor do Movimento paulista de 22. Se estivesse vivo, depois das inúmeras homenagens, talvez mudasse de idéia quanto a sua unanimidade ou apenas com olhar debochado, corrigisse o rumo da conversa para algo mais proveitoso.

por Mariel Reis