2 de abril de 2013

Sobre triângulos e constelações

I. "Esse mundo verdadeiro das coisas de mentira"
O fazer literário é um "lugar" onde se cruzam imagens, imaginários, histórias; onde essas "coisas" se emaranham, são recriadas; onde tempos são pensados, repensados, revisitados, inventados; onde tantas coisas mais se dão nesse "mundo verdadeiro das coisas de mentira" — para aqui usar da expressão da historiadora Sandra Jatahy Pesavento [PESAVENTO, 2002] —, que, contudo, diz muito sobre as aspirações e os embates de um dado tempo, de uma dada sociedade.
No Brasil, há já algum tempo (sobretudo a partir do ano de 2003) que esse "mundo verdadeiro das coisas de mentira", escrito noutras partes do mundo, tem produzido debates e alentado discussões de modo mais presente. Refiro-me aqui à presença (e à ausência, como se verá) no mercado editorial brasileiro de obras de autores africanos, mais especificamente de autores oriundos dos países de língua oficial portuguesa: Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe.
E se aponto 2003, esse marco vem referir a promulgação da Lei nº 10.639, de 09 de janeiro de 2003, sancionada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que alterou a lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei das Diretrizes e Bases da Educação – LDB). A nova lei acresceu à anterior a obrigatoriedade do ensino, nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio do país, de história e cultura africanas e afro-brasileiras. Num de seus parágrafos, estabeleceu ainda que os conteúdos dessas temáticas deveriam ser ministrados em todo o currículo, "em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura" [BRASIL, 2003. Grifo meu.
Ora, mas de imediato uma questão contundente se coloca: "como ensinar o que não se conhece?”, como se (nos) pergunta o historiador Anderson Ribeiro Oliva [OLIVA, 2003]. Uma questão que ainda permanece (e que talvez permaneça por mais tempo ainda).
Atendo-me aqui ao propósito de pensar algumas questões acerca dos trânsitos literários de autores africanos do [dito] "espaço lusófono" ao Brasil, e na busca por dar a elas uma melhor imagem, uma que melhor propusesse seus dilemas, encontrei-a nas palavras do escritor moçambicano Mia Couto. Pronunciando-se, em julho de 2007, numa conferência em Lisboa, Mia nos diz:
Os lusófonos são pensados e falados do seguinte modo: Portugal, Brasil e os PALOP. Surgimos como um triângulo com vértices: um no Brasil, um em Portugal e um terceiro em África. Ora, os países africanos não são um bloco homogéneo que se possa tratar de modo tão redutor e simplificado. Não se pode conceber como uma única entidade os 5 países africanos que mantêm, entre si, diferenças culturais sensíveis. As nações lusófonas não são um triângulo, mas uma constelação em que cada um tem a sua própria individualidade. [COUTO, 2007. Grifo meu.]
Uma constelação em vez de um triângulo: eis a imagem mais adequada, segundo Mia Couto.
Mas é sabido que a mudança de uma imagem não muda as relações mesmas, não altera as realidades existentes, e, no que toca à literatura, não soluciona alguns impasses que se verificam no trânsito das escritas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe ao Brasil.
II. Os impasses do triângulo
O maior impasse nesse trânsito literário África-Brasil diz respeito ao fato de que, como propõe Mia Couto, ele ainda se dá triangularmente.
[PRIMEIRO VÉRTICE] – Primeiramente, há a produção, num pretenso e uno vértice: África. E há já aí alguns dilemas e impasses aos quais não se pode passar ao largo. Como o fato de que grande parte do mercado editorial nos países africanos de língua oficial portuguesa é de domínio de grupos editoriais portugueses (caso, por exemplo, dos grupos Porto Editores e LeYa), cujo foco de atuação é o mercado didático; nesse sentido, restringe-se o espaço para a produção literária, sobretudo de novos autores, uma vez que as pequenas editoras (muitas delas mantidas por associações de escritores) não dão conta de dar vazão à produção literária que poderia ser editada, caso houvessem maiores possibilidades de edição.
[SEGUNDO VÉRTICE] – Em seguida, põe-se em operação um "filtro" (que envolve universidades e suas produções de saberes, o mercado editorial, a crítica especializada, etc.), no qual se seleciona o que é "bom" e o que não é, o que tem "potencial de mercado" e o que não tem, o que tem "valor literário" e o que não tem, em suma, o que se irá publicar e o que não se irá num outro vértice do triângulo: Portugal. E aqui um fator é fundamental: o fato de que é por meio dos selos dos grandes grupos editoriais portugueses que os autores africanos de língua portuguesa chegam a Portugal; ou seja, há uma relação direta entre a atuação desses grupos e suas editoras em África e os autores que passam a ser editados (e, por conseguinte, reconhecidos, legitimados) em Portugal. E não só aí, pois que é Portugal, por meio de órgãos como o Instituto Camões, o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, o Ministério da Cultura e o Ministério dos Negócios Estrangeiros (a língua como negócio, atentemos) que, por meio de programas governamentais, apoia a edição de "autores lusófonos" no estrangeiro, inclusive no Brasil. A quem não passem despercebidos os pequenos detalhes, terá chamado atenção a presença da logomarca dessas instituições e o dizer "edição apoiada com o apoio do[a]..." na folha de rosto ou na contracapa de inúmeras edições de obras de autores africanos, como Mia Couto [A varanda do franfipani; O outro pé da sereia], Pepetela [Parábola do cágado velho], Ondjaki [Bom dia camaradas], Paulina Chiziane [Niketche: uma história de poligamia], Ruy Duarte de Carvalho [Os papéis do inglês], José Eduardo Agualusa [As mulheres do meu pai], entre outros.
[TERCEIRO VÉRTICE] – Após esse "filtro" em terras lusitanas (sob estreito interesse de seus grupos editoriais) é que o mercado editorial brasileiro tem acesso à produção literária africana em língua portuguesa. Os títulos e autores aqui editados são justamente aqueles que o "filtro" português julgou de qualidade e interesse. É em Portugal, e a grupos editoriais portugueses, que os direitos de edição de autores africanos são adquiridos para edição no Brasil. É por meio de editoras portuguesas e seus agentes que se traz ao Brasil "autores lusófonos" para participação em feiras e festas literárias. Em suma, não creio que seja demasiado dizer-se que, no que diz respeito ao trânsito literário de autores africanos de língua portuguesa ao Brasil, é Portugal (a ex-metrópole colonizadora) o vértice mais forte do triângulo, no sentido de que é aí que se operam os meandros de um processo ao final do qual resulta uma produção literária que nós, cá no Brasil, "consumimos" (e a palavra aqui tem sua razão de ser) e, por esse consumo, criamos a nossa imagem do que seja a "literatura africana de língua portuguesa".
III. O desejo de constelação
É ante esse processo triangular (do qual é ciente e se sabe participante) que Mia Couto (e não só ele; cite-se também José Eduardo Agualusa e Pepetela, a exemplo) tem expressado, em inúmeras oportunidades, o desejo de constelação. Qual seja: de que as relações literárias (e não só) entre Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe se processem noutra perspectiva; que cada país acesse a outros diretamente, que as produções literárias cheguem a todos os lados sem o "filtro único", hoje existente, feito em Portugal.
É claro que para que esse desejo se possa tornar uma prática, muito (muitíssimo) há ainda a se fazer. Questões que dizem respeito ao desenvolvimento econômico desses países, ao panorama de crise em Portugal, ao avanço dos índices de letramento em África, à formação de públicos leitores, ao desenvolvimento da crítica especializada em cada país, etc. Como se pode conjecturar, não são questões que num curto prazo possam dar uma guinada e passem a operar noutros patamares (como os desejados por Mia Couto). Há muito ainda a se fazer, é certo.
De modo mais imediato, num olhar mais próximo (temporalmente falando), o que se observa no Brasil é que tem havido um aumento no número de autores e obras do [dito] "espaço lusófono" aqui editados. Observa-se nas universidades brasileiras uma maior presença de estudos sobre esses autores, algo facilitado pela maior disponibilidade (de títulos e autores) no mercado.
Todavia, algumas considerações talvez se façam necessárias para uma melhor compreensão desse novo panorama.
Uma delas diz respeito ao fato de que muitos desses estudos atrelam a obra desses autores africanos à obra de autores brasileiros (como Guimarães Rosa, para as obra de Mia Couto e José Luandino Vieira, a exemplo). O que não se constitui num problema por si, obviamente, mas aponta ou faz sugerir dados interesses e preferências que são instigantes à reflexão. Não apontaria, essas escolhas, a certas "imagens de África" que temos, mais identificáveis em dados autores do que outros? A reiterarem-se (apenas) essas preferências, não deixaríamos de vislumbrarmos outras percepções de África? E os autores que não guardam laços (temáticos, estilísticos, etc.) com a literatura brasileira, não ficaríamos a desconhecê-los? Por que autores que tratam duma África urbana, cosmopolita, etc., não interessam tanto quanto aqueles que escrevem uma África mais interior, mais "misteriosa"? "Como se a modernidade que os africanos estão inventando nas zonas urbanas não fosse ela própria igualmente africana", como nos coloca Mia Couto [COUTO, 2005]. Não estaríamos, ainda que inconscientemente, a exigir dos escritores africanos provas de sua "africanidade", de sua "autenticidade"? Uma ficção científica ou um romance policial que se passe na China, na América, escrita por um africano, não é literatura africana? São reflexões que carecemos fazer.
E não é de somenos ponderarmos acerca do fato de que, em sua maioria, os autores aqui estudados são aqueles que passaram pelo "filtro" do mercado (e da universidade, da crítica especializada) em Portugal. E, como se sabe, nenhum "filtro" é gratuito. Toda seleção tem seus quês e porquês. Não se pode deixar de interrogar: que autores não passaram por esse "filtro"? Por que não passaram? Que questões podem ser levantadas ser pensamos essas problemáticas? Que África Portugal "consume" (literariamente)?
Uma reflexão que não se coloca apenas em relação à literatura africana em língua portuguesa. Também as literaturas africanas escritas em outras línguas, adotadas como oficiais após as independências, têm permanecido algo circunscritas aos blocos linguísticos ("anglófono", "francófono") a que pertencem, e, por sua vez, também às ex-metrópoles colonizadoras e seus mercadores editoriais. Trata-se de uma problemática de já algum tempo, como nos lembra Ali A. Mazrui, em seu texto O desenvolvimento da literatura moderna, integrante do oitavo volume da História Geral da África. Para Mazrui, as "dificuldades econômicas e técnicas" têm "bloqueado e freado sobremaneira a produção literária"; dificuldades essas que dizem respeito à "escassez de gráficas, a falta de editoras de um porte razoável" e ao "oneroso custo dos livros" na maioria das regiões do continente [MAZRUI, 2011]
Ante tal quadro, os grandes grupos editoriais das ex-metrópoles colonizadoras, em sua atuação em África, privilegiam não os trânsitos literários no continente e deste com o mundo, mas os trânsitos nos espaços circunscritos pela língua da escrita, desse modo mantendo traços de domínios a que não podemos deixar de nominar de neocoloniais. Não é acaso que em não poucas livrarias portuguesas autores africanos como Mia Couto, Pepetela, Agualusa e tantos outros, estejam colocados nas prateleiras de "Autores de língua portuguesa". A ênfase (a determinação?) está na língua, segundo essa lógica. Será assim mesmo? É a língua o determinante da escrita desses autores? Não seria antes um certo olhar sobre o mundo, de quem viveu sob a opressão colonial, lutou por um país independente, testemunhou descaminhos no pós-independência, mas, acima de tudo, tem esses lugares (suas nações) e suas histórias (complexas) como aquilo que mais os leva à escrita, à criação literária?
São muitas as questões, é certo, sendo certo, ainda mais, a urgência de refleti-las. Penso que são elas, somente elas, que nos podem ajudar a pensar que África, que literatura africana nós, brasileiros, "consumimos". Sem essa reflexão, corremos o sério risco de assim permanecermos: pacíficos "consumidores", quando deveríamos (devemos) ser profícuos interloculeitores (à lá Mia Couto: a palavra e a ideia proposta).
por Dércio Braúna
______________________
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Lei n. 10.639 de 09 de jan. de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, DF, 2003.
COUTO, Mia [2005]. Que África escreve o escritor africano? In ___. Pensatempos: textos de opinião. Lisboa: Caminho, 2005, p. 59-63.
COUTO, Mia [2007]. Língua portuguesa, cartão de identidade dos moçambicanos. Alocução produzida na Conferência Internacional sobre o Serviço Público de Rádio e Televisão no Contexto Internacional: A Experiência Portuguesa, no âmbito dos 50 anos da RTP, realizada no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, nos dia 19 de Junho de 2007. Disponível em: <http://www.ciberduvidas.com/textos/lusofonias/10899#>. Acesso em: 23 fev. 2013.
MAZRUI, Ali A [2011]. O desenvolvimento da literatura moderna. In História Geral da África – Vol. VIII. Brasília: Unesco, 2010, pp. 663-696. Disponível em: <http://www.unesco.org/brasilia>. Acesso em: 28 jan.
OLIVA, Anderson Ribeiro [2003]. História da África nos bancos escolares: representações e impressões na literatura didática. Estudos afro-asiáticos, vol. 25, nº 3, Rio de Janeiro, 2003, p. 421-461 Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a03v25n3.pdf>. Acesso em: 16 abr. 2006.
PESAVENTO, Sandra Jathay [2002]. Este mundo verdadeiro das coisas de mentira: entre a arte e a história. In Estudos Históricos, RJ, n. 30, 2002, p. 56-75.
*DÉRCIO BRAÚNA [1979] - É historiador, mestre em História Social pela Universidade Federal do Ceará, com estudos sobre as relações história/literatura e sobre questões pós-coloniais em África. É também poeta e contista, autor das obras: O pensador do jardim dos ossos [poesia], A selvagem língua do coração das coisas [poesia], Uma nação entre dois mundos [história], Metal sem húmus [poesia], Como um cão que sonha a noite só [Conto]. Tem ainda participação em diversas antologias.