25 de março de 2013

Cemitério de elefantes, por Miguel Sanches Neto

Cidade duplex

 
Somente cinco anos após a publicação de Novelas nada exemplares é que aparece o volume Cemitério de elefantes (1964 – 7ª. edição: Record, 1984), colocando em destaque outra tensão de grande importância para o entendimento da obra de Dalton. Se na coletânea anterior sobressai a antítese província versus metrópole, Cemitério de elefantes apresenta uma temática relacionada com a província, mas já não mais diretamente oposta à metrópole. Esta parece ser a orientação geral do livro.
Um fato pouco comentado a respeito de Dalton Trevisan é a sua ligação pessoal com o município de Colombo, terra natal do contista. Isto, enquanto elemento biográfico, é irrelevante, uma vez que, por adoção, Dalton é curitibano. Mas esta pequena curiosidade nos auxilia a entender este momento especial na consolidação de um universo ficcional que é Cemitério de elefantes. Podemos ler neste livro o inter-relacionamento de dois ambientes e, em última análise, de duas realidades. De um lado, há as histórias que se passam em um contexto rural. Os personagens são seres à margem do mundo moderno. A temática destas histórias (“O Primo”, “À margem do rio”, “Dia de matar porco”, “Caso de desquite”, “O baile”, “Ao nascer do dia”) refletem um universo fundado em valores patriarcais. É, por assim dizer, uma fotografia das redondezas de Curitiba. No polo oposto, encontramos a temática urbana – magistralmente captada em um dos contos mais famosos de Dalton: “Uma vela para Dario”, que apresenta a morte em sua degradada versão urbana. Dario passa mal, morre e é roubado sem que ninguém o ajude. Falece por falta de socorro. A multidão que se forma ao seu redor, durante as horas de agonia, é movida pela curiosidade e não pela compaixão. A Curitiba retratada aqui tem traços de cidade grande. A anulação do indivíduo e a hegemonia da multidão acabam criando um cenário caracterizado pelo anonimato. Em outros textos reencontramos este universo urbano (“Dinorá”, “A visita”, “A casa de Lili” etc.) que não constitui uma oposição total ao primeiro.
Optando por esta dupla visada, Dalton chama a atenção para a convivência de dois mundos num único espaço. Curitiba é a colônia e a cidade. Está ligada ao universo rural, sem deixar de ter traços de cidade grande. Este convívio não é pacífico nem gratuito. Mostra que uma realidade patriarcal, com seus valores e preconceitos defasados, continua presente na urbe que se moderniza.
 
Há em Cemitério de elefantes uma demarcação das fronteiras temáticas da Curitiba de Dalton, onde estão incluídas as adjacências com um perfil agrário e violento.
 
Se é correto afirmar que o livro reflete Curitiba e suas margens, não é menos exato pensar que ele exprime o mundo dos seres situados à margem da Curitiba oficial.
Daí o valor emblemático do conto “Cemitério de elefantes”. Os bêbados que vivem à beira do rio e que são alimentados pelos pescadores simbolizam a condição marginal do elenco de personagens que compõe a ficção de Trevisan. O parentesco com os elefantes estabelece uma dupla significação para os bêbados: são a imagem viva do peso, da lentidão e da falta de jeito e, ao mesmo tempo, têm a dignidade de aceitar resignadamente um destino inelutável.
Não pode ficar esquecido, devido à sua relevância dentro do livro, a oposição/identificação entre pai e filho. Em “O caçula”, o velho e seu filho se odeiam. Mas este ódio tem um fundamento: um vê no outro a sua própria imagem. Há, na verdade, um espelhamento. Ao odiar o seu filho, ele está recusando a aceitar a sua própria identidade, uma vez que o caçula, até nos mínimos atos, é uma cópia do velho. Esta negação do outro é uma tentativa de fechar os olhos para os seus próprios erros. Assim como os contrários se atraem, os idênticos se repelem. A famosa frase “todo filho é uma prova contra o pai” tem aqui uma possível explicação.
As situações degradadas encontram uma continuação nos filhos. Tal herança define a permanência atemporal de um universo defasado em relação às mudanças históricas. Os personagens vivem num tempo sem sintonia com as conquistas mais recentes da civilização. Haverá sempre um abismo criado pela permanência de valores passados.
Em “A visita”, Ema vai se encontrar com o amante acompanhada pela sua filhinha. Narra ao amante o trauma que teve por ter presenciado os amores clandestinos de sua mãe. Apesar desse sentimento, ela traz a filha que, num ato de revolta silenciosa, rói o casaco de lã. A mãe transfere à menina os mesmos traumas que tivera na infância.
Este continuísmo leva Dalton a retratar o seu campo ficcional como algo que não se altera, como o império do mesmo. Isso vai definir as opções temáticas dos livros posteriores que reiterarão as mesmas situações reveladas nesses mapeamentos iniciais. O autor optará por estudar os vários ângulos de um universo que permanece sempre idêntico.
A Curitiba de Cemitério de elefantes, com vasos comunicantes com um mundo agrário fundado em valores patriarcais, é uma cidade duplex que encarna as contradições de uma sociedade onde o primitivo mina os anseios burgueses de progresso.
No livro também aparece uma história metalinguística, que revela a condição do contista. Trata-se de “O espião”. Aqui o ficcionista é definido como alguém que busca desvelar os acontecimentos – no caso, observa um orfanato. Esta preocupação com as órfãs, seres rejeitados pela sociedade, acaba fortalecendo a unidade temática do livro. O contista se coloca na condição de espião para flagrar os fatos sem chamar a atenção, sem revelar a sua identidade. Assumindo também ele o anonimato, pode penetrar nas dobras mais recônditas e desprezadas das relações humanas.
O espião tem que se manter ao mesmo tempo ausente e presente. É essa invisibilidade que lhe dá a oportunidade de ver o que seria impossível para um observador declarado.
O conteúdo deste conto nos fornece uma resposta para a invisibilidade, tida por alguns como encenação, que Dalton tanto busca na vida real. Ao se recusar a aparecer nos jornais, a dar entrevistas, o autor não está apenas fazendo cena ou se isolando em sua timidez. Está antes de tudo defendendo o seu anonimato, condição para exercer a espionagem literária. A perda dessa invisibilidade desmascararia o espião, colocando a perder a possibilidade de captar instantâneos humanos. Disfarçado de mero transeunte, Dalton vai esquadrinhando a vida, para revelá-la potencializada em seus livros.

NOTA

O texto O labirinto da solidão foi publicado primeiramente no jornal A gazeta do povo, em 16 de junho de 1994 e disponibilizado no site Herdando uma biblioteca, do escritor Miguel Sanches NetoA republicação no LiteraturaBr faz parte de um acordo entre esses dois veículos.