21 de março de 2013

Um livro desmontável, por Miguel Sanches Neto



Diz a lenda que o vampiro é um morto que sai de seu túmulo para sugar o sangue dos vivos. Tendo em vista o livro O Vampiro de Curitiba (1965 – 11ª. edição, 1991), seria correto pensar que o túmulo é a solidão e o sangue, o fugaz orgasmo. A danação deste vampiro é de ordem erótica. Em Nosferatu, Herzog doa ao ato de sugar uma conotação sexual explícita. É a sedução de Lucy Harker que prende e aniquila o vampiro. Nosso conde Nelsinho não tem um estatuto aterrorizador como os seus parentes e está vinculado a uma imagem patética. Funciona, antes de mais nada, como uma paródia da imagem do Vampiro veiculada pelo cinema. Trata-se da desconstrução de um mito da cultura de massa através da apropriação e deformação de atributos.

O livro abre com uma espécie de profissão de fé, em que o herói revela a sua maldição: é obcecado pelas fêmeas. As mulheres são a sua danação: “Elas fizeram o que sou”. Este primeiro texto é uma caracterização do herói, uma poética do vampirismo em Dalton Trevisan. Abrindo um livro que se quer como novela, esta primeira parte funciona como uma apresentação do herói. Não há descrições detalhadas do personagem, nem a revelação, em terceira pessoa, de sua personalidade. É o próprio conde, vagando pelas ruas de Curitiba, enlouquecido pelas mulheres, que se revela ao revelar sua tara. Diríamos que é este discurso fixo que compõe o seu caráter.

Depois da apresentação, iniciam-se as aventuras (ou desventuras) do nosso conde. A primeira delas (“Incidente na loja”) se estrutura em uma sequência de perseguição e assalto. O herói, em horário de almoço, segue uma empregadinha do comércio, invade a loja onde ela trabalha sozinha e comete o ato. Nesse momento inicial, ele é o devorador. Vive um papel ativo de sujeito que, sem piedade, ataca a vítima e foge.

Temos, como imagem invertida deste episódio inaugurador da trajetória do protagonista, o último texto, que fecha o livro com uma imagem oposta do conde. No desenrolar das estórias, percebe-se o quanto ele é atormentado pelo desejo insaciável. Este desejo é sua prisão perpétua e a maldição que recai sobre ele, pois, como diz, não espera nem na velhice o sossego. O derradeiro relato, “Noite da paixão”, põe em cena o encontro, numa sexta-feira santa, com a última das prostitutas. A história dialoga com o próprio evento bíblico da crucificação de Cristo. Nelsinho encontra na igreja uma meretriz, a quem chama de Madalena, e com ela vai a um hotelzinho. Toda a relação acontece dentro de um ritual religioso, onde há passagens como as seguintes: “Terei de beber, ó Senhor, deste cálice” e “Tome e coma, eis o meu corpo”, diz ele, respectivamente, quando percebe que a mulher é banguela e quando resolve se entregar a ela.

Ao descobrir a hediondez da prostituta, o herói se sente em perigo e tenta recuar, mas já é tarde. Agora terá que ir até o fim. É ela, numa inversão de papéis, que tenta morder (ainda lhe restam os caninos) o pescoço do vampiro. Depois de relutar um pouco, diante da situação incontornável, ele se deixa crucificar sob o corpo fétido. A esponja de fel que recebe é o beijo longo na boca, consumação do ato sacrificial: “Em cheio a ventosa obscena, ó esponja imunda de vinagre e fel. Está consumado” (p.106).

Devorado, Nelsinho passa de sujeito a objeto, dizendo: “Fui inocente, meu pai” (p.107). O percurso do herói vai de ativo a passivo, de carrasco a vítima, de devorador a devorado, de perseguidor a perseguido. Esta trajetória que une dois pontos de uma relação tem muitas implicações na personalidade do protagonista.
A imagem do vampiro se funda na necessidade do outro. Ele só pode viver graças à sua vítima. No fundo, há uma dependência bem acentuada, que caracteriza Nelsinho como um “doente da paixão”. Seu apetite sexual é insaciável e o obriga a viver em constante sobressalto. Dalton constrói uma figura que transita por dois papéis, uma espécie de violentador-violentado. Tal duplicidade instaura no texto um clima de comédia, e o vampiro se torna a imagem de um fantasma que é, a um só tempo, instrumento de uma cultura falocrática e vítima dela. Sem o seu poder de vilão, de figura do mal, como geralmente é visto o tarado, o nosso conde, que traz a fragilidade até no nome (o diminutivo não é gratuito), não consegue ocupar o seu lugar. É revelador o episódio em que, depois de transar na cama do pai, Nelsinho diz: “Poxa, sou mais homem do que meu pai” (p.61). Exercer a masculinidade máxima, transcendendo a potência paterna, é o desejo deste dócil taradinho, entregue à sua pantomima de vampiro decaído.
Atormentado pela paixão carnal, pois fora programado somente para ela, o herói se dilacera com a sua necessidade de caçar o outro. Sua vida é esta busca constante: “Por que são precisos dois, ó meu Deus, para fazer o amor?”. Só lhe resta culpar o outro por sua perdição. Esta dependência é o seu grande tormento. Além de devorar a vítima e ser devorado por ela, há ainda um estágio mais dramático desse processo, a autodevoração. O desejo incandescente devora as entranhas de Nelsinho. Em última instância, ele é apenas uma vítima querendo desempenhar um papel ativo que já não lhe cabe.
Dessa forma, o novo vampiro é uma figura que perdeu o seu foro de malignidade e que vive, entre nós, acorrentado a um destino implacável. Estamos muito mais predispostos a amá-lo do que a odiá-lo. Assim como o Fantasma de Canterville (de Oscar Wilde), este vampiro é um monstro que já não nos assusta, apenas causa comoção. Sem descanso, sem poder dormir, este vivente de uma Curitiba mítica continuará a sua eterna ronda.
O drama de Nelsinho é ser um sujeito fragmentado, à procura de uma outra parte não encontrável. Num nível paralelo a este existe a problemática da definição de um tipo de forma que desemboca numa outra camada de significação do texto. O Vampiro de Curitiba é apresentado como novela. E pode ser lido como tal porque existe a continuidade de certo comportamento em relação à busca do outro. No entanto, não podemos ignorar que este volume é um livro desmontável. Cada unidade tem autonomia em relação às outras. As ações não ultrapassam as fronteiras que as separam. Apenas o herói e sua tara servem como elementos aglutinadores destas narrativas. O livro permite, pois, a desmontagem. Ou, dizendo de uma maneira mais direta, ele se deixa ler como um livro de contos.
Logo, é possível concluir que a fragmentação textual se correlaciona com a própria fragmentação do sujeito. Cada história reitera, na impossibilidade de transcendência de seus eventos, a própria carência de completude do sujeito vampírico, que não consegue encontrar um outro que o salve. As histórias não têm continuidade na novela assim como as relações de Nelsinho são momentâneas. Sua condição insaciável de vampiro vem da impossibilidade de um encontro duradouro. Se ele vive a busca interminável do outro, isso significa, numa leitura espelhada, que ele foge do outro, pois não se liga a ninguém. Neste caso, amar o outro como um sujeito seria matar o vampiro.
O volume guarda outra possibilidade de interpretação que não pode continuar ignorada. O herói é sua tara. E vice-versa. Nelsinho aparece como menor envolvido num caso de violação, como jovem atrás da professora primária no Rio, como advogado sedutor, como pequeno e explorado funcionário etc. Em “Encontro com Elisa”, o conde está numa outra cidade, provavelmente próxima da capital. Estas várias aparições do vampiro não se dão em ordem cronológica, o que reforça a condição fragmentada do volume. Numa leitura ingênua, tomaríamos isso como um mero embaralhar aleatório dos episódios de uma vida. Mas, numa obra-prima (e este é incontestavelmente o caso do livro em questão) nada é gratuito, mesmo que não tenha sido fruto das intenções do autor. O acaso também faz a obra, enchendo de significados virtuais as entrelinhas. É neste sítio que o crítico deve cavar.
A pergunta que se impõe é: por que Dalton evitou a linearidade? Ou: um nome e uma tara podem constituir um indivíduo particularizado? O que proponho é que tomemos o vampiro não como um EU singular, mas como um atributo, como uma persona que representa uma coletividade. Nelsinho seria vários, funcionando como protótipo do tarado de província que professa valores defasados. Suas ações não são só suas e o nome aqui é um rótulo que busca abarcar um tipo. Os nomes na ficção de Trevisan são sempre máscaras vazias ajustáveis a várias faces. Há uma pista disso na poética que serve como introdução: “No fundo de cada filho de família dorme um vampiro” (p.10). Entidade transpessoal, o conde Nelsinho tem um parentesco com o Fantasma de Canterville que, símbolo de uma sociedade antiquada (a Europa do tempo de Wilde), já não consegue mais assustar a família americana (oriunda de um universo moderno) que adquire a mansão assombrada. O vampiro caracteriza um tipo ultrapassado que, diante de nossos olhos, só pode ser risível e enternecedor.
Por Miguel Sanches Neto



NOTA


O texto Um livro desmontável foi publicado primeiramente no jornal A gazeta do povo, em 28 de julho de 1994 e disponibilizado no site Herdando uma biblioteca, do escritor Miguel Sanches NetoA republicação no LiteraturaBr faz parte de um acordo entre esses dois veículos.