18 de março de 2013

Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: Bildungsroman ou romance de formação

Quando estamos nos preparando para algum tipo de apresentação, avaliação ou seleção fica quase impossível visualizarmos o que virá posteriormente. Esse texto surgiu diante de uma árdua preparação para uma seleção de mestrado. Durante um ano, no qual passei quase seis meses praticamente na clausura mergulhado em livros, tive que ministrar o tormento que é um processo seletivo, de estar preparado tanto para a vitória como para o fracasso. Sempre é difícil perder. Contudo, caso não fosse aprovado, havia entendido que não poderia pensar que seria um derrotado ou que não havia aprendido nada nesse período de preparação. Pelo contrário, ganhei o que ninguém pode me tirar: o conhecimento. Descobri novos autores e pude conhecer melhor outros já consagrados, mas que nunca tive a oportunidade de estudar de forma mais dedicada.

Conceição Evaristo foi uma autora que pude conhecer durante esse processo. Trazendo um livro simples, mas cheio de conteúdo a ser estudado, a escritora enfatiza uma área que precisa ser discutido com equilíbrio e que causa polêmica em alguns meios acadêmicos: a literatura afro-brasileira, como também a literatura de autoria feminina.

Nota-se que atualmente podemos ver tanto posturas radicais na defesa da “literatura dos excluídos” quanto a arrogância, e por que não ignorância, de professores que viram as costas para discussões que consideram inferiores ou desnecessárias.

Quem estuda literatura não pode se prender aos pontos extremos, mas deve viver a literatura democraticamente.

Este ensaio não tem o objetivo de defesa de quaisquer área da Literatura, mas sim discutir, sem nenhuma máscara tendenciosa, temas que estão sendo avultados no espaço literário.

Alguns aspectos relevantes

Conceição Evaristo, autora mineira radicada no Rio de Janeiro, narra a história da protagonista feminina e negra que dá nome a sua obra, Ponciá Vicêncio. Já no início, percebe-se, não pela linguagem ou estrutura, mas por representar, digamos, a “literatura dos excluídos”, que é um romance de autoria feminina e negra, o que faz do livro um colaborador para um reexame da nossa literatura e do nosso passado nacional.

Nessa frente, o livro destaca a cultura negra (ou Negritude) e firma a figura da mulher como detentora da escolha, assim, quebrando com a hegemonia masculina. Vê-se que Conceição Evaristo “emprestou” a sua vivência para o romance, ato que ela mesma chamou de “Escrevivência”. Algo semelhante ao que afirma Antonio Candido:

o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (CANDIDO, 2010, p.14, grifos do autor).

Na obra de Evaristo, nota-se a presença de uma protagonista negra que realiza uma viagem espaço-temporal na tentativa de encontrar-se consigo mesma, buscando, assim, a sua essencialidade em meio a um mundo circundante fragmentado.

Evaristo, sob a ótica da protagonista, ressalta a cultura negra e os problemas de ser negro em um país preconceituoso e que marginaliza a Negritude. É a partir da literatura afro-brasileira que a autora mineira mostra que a sua escrita é distinta da literatura nacional, pois como foi afirmado acima, o cânone além de excluir a literatura feminina, também exclui a literatura afro-brasileira, estabelecendo uma hegemonia branca. Segundo Eduardo de Assis Duarte, no texto Literatura afro-brasileira: um conceito em construção (2005), a literatura negra se difere das letras nacionais por alguns critérios de configuração. Primeiro, pela sua temática, retratando o negro como tema principal; segundo, pela autoria, ou seja, uma escrita que nasce de um autor afro-brasileiro; terceiro, pelo ponto de vista, pois não basta ser negro, é necessário que o autor se identifique com a visão de mundo desse povo; quarto, pela linguagem que deve mostrar um discurso específico, ou melhor, mostrar o vocabulário, expressões que encontramos na cultura negra; e quinto, pelo público leitor que possa receber essa literatura de formação afrodescendente. Todos esses elementos configuradores não podem ser isolados, pois desta forma não conseguirão ilustrar a literatura afro-brasileira de forma completa.

1. O Bildungsroman

Dinamizando passado e presente a obra de Conceição Evaristo narrará uma personagem em busca de uma autonomia. O romance vai desde a infância de Ponciá até a sua idade adulta, escrito de forma fragmentada, clareando, ao decorrer do enredo, as lacunas deixadas durante o ir e vir de memórias. Com as brechas da narrativa preenchidas, nota-se que este romance narra a trajetória de Ponciá rumo a uma liberdade e a uma busca da sua identidade. Para isso, a personagem terá que desvincular-se da sua terra e da sua família para que possa amadurecer, assim, pode-se chamar a narrativa de Evaristo como romance de formação ou, segundo o termo alemão, Bildungsroman.

Ao mesmo tempo que configura uma literatura afro-brasileira, o livro também mostra a formação e a busca de amadurecimento de Ponciá. O Bildungsroman é a narração de um sujeito que sai da sua origem em busca do autoconhecimento. Como pode ser percebido, a protagonista

Estava cansada de tudo ali. De trabalhar o barro com a mãe, de ir e vir às terras dos brancos e voltar de mãos vazias. De ver a terra dos negros coberta de plantações, cuidadas pelas mulheres e crianças, pois os homens gastavam a vida trabalhando nas terras dos senhores, e depois a maior parte das colheitas ser entregue aos coronéis. (EVARISTO, 2006, p.33)

No trecho, a personagem já não acha suficiente viver na terra dos Vicêncios, já não se identificava com aquela vida, a qual era a mesma de geração em geração. Então, cheia de esperanças, parte para a cidade em busca de uma vida melhor:

O inspirado coração de Ponciá ditava futuros sucessos para a vida da moça. A crença era o único bem que ela havia trazido para enfrentar uma viagem que durou três dias e três noites. [...] Haveria, sim, de traçar o seu destino. (EVARISTO, 2006, p.36)

Todavia, Ponciá torna-se empregada doméstica, uma das profissões que estigmatizaram um regime marginalizado no qual o negro sempre é inserido nas grandes cidades.

Nesse contexto, Ponciá consegue comprar um barraco na favela, casa-se e tem sete filhos, mas todos morrem após o nascimento. Tais acontecimentos, principalmente a morte dos filhos, colaboram para afirmar o caráter trágico e cruel da narrativa, o que faz que a protagonista entre em um estado de letargia profunda e volte-se cada vez mais para dentro de si, mergulhando nas suas memórias. Pode-se dizer, com base em Georg Lukács, que em Ponciá há um “descompasso entre interioridade e mundo” (LUKÁCS, 2000, p), pois vê-se que ela cada vez mais se desliga da esfera circundante, fugindo desse mundo desconcertado mediante suas lembranças da infância, que no termo de Octavio Paz (1984), é o “tempo sem datas”, a idade que não sentimos angústias ou a qual o tempo não seja contado.

Quando Ponciá Vicêncio viu o arco-íris no céu, sentiu um calafrio. Recordou o medo que tivera durante toda a sua infância. Diziam que a menina que passasse por debaixo do arco-íris virava menino. [...] Naquele época Poncia Vicêncio gostava de ser menina. Gostava de ser ela própria. Gostava de tudo. Gostava. Gostava da roça, do rio que corria entre as pernas, gostava dos pés de pequi, dos pés de coco-de-catarro, das canas e do milharal. (EVARISTO, 2006, P.13)

O amadurecimento, característica do romance de formação, acontece a partir de muito sofrimento de Ponciá. Depois de uma série de infortúnios, a personagem reencontra a família que tanto sonhou um dia reunir novamente, fechando, assim, o ciclo do Bildungsroman, pois geralmente o protagonista “encontra-se de volta a sua família” (ARRUDA, 2007, p. 23).

Ponciá Vicêncio representa uma heroína problemática que vive um devaneio memorialístico como fuga:

Ponciá Vicêncio não queria mais nada com a vida que lhe era apresentada. Ficava olhando sempre um outro lugar de outras vivências. Pouco se dava se fazia sol ou se chovia. Quem era ela? Não sabia dizer. Ficava feliz e ansiosa pelos momentos de sua auto-ausência. (EVARISTO, 2003, p. 90)

A citação mostra claramente que a protagonista gostava de encontrar-se com suas memórias as quais a deixavam feliz. Este processo de negação do mundo torna o passado o responsável em resgatar uma vida cheia de sentido. Segundo Lukács,

Descomedidamente, a riqueza interna do puramente psicológico é elevada a única essencialidade, e, com uma inexorabilidade igualmente descomedida, revela-se a insignificância de sua existência no todo do mundo; o isolamento da alma, a sua insularidade em a relação a todo apoio e todo vínculo, agrava-se até o descomedido, e ao mesmo tempo o fato de esse estado de alma depender justamente dessa situação do mundo é aclarado com luzes impenitentes. (LUKÁCS, 2000, p. 124)

Conceição Evaristo elabora um desfecho mítico-religioso para narrativa. Ponciá depois de muito tempo reencontra a família e volta para a sua terra, completando o ciclo cíclico da personagem, na qual nota-se a efetivação da herança deixada pelo Vô Vicêncio. Em uma leitura, afirma-se que o autoconhecimento de Ponciá chega ao seu ápice e que o mundo a qual está inserida já não abarca seu modo de viver. No último parágrafo do romance vemos um fim poético, marca da autora mineira:

Lá fora, no céu cor de íris, um enorme angorô multicolorido se diluía lentamente, enquanto Ponciá Vicêncio, elo e herança da memória reencontrada pelos seus, não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio. (EVARISTO, 2003, p. 128)

Com a presença dos três elementos que iniciam o livro, o angorô, o rio e o barro, representado pela estatueta do homem-barro na janela, destacado no parágrafo anterior ao desfecho, Evaristo encerra a trajetória de forma cíclica de Ponciá Vicêncio. O que não deixamos de observar é o caráter de comunhão entre Ponciá e a Natureza que eterniza a personagem: “Lá fora,[...] Ponciá Vicêncio [...] não se perderia jamais, se guardaria nas águas do rio.” O que também fecha o ciclo que foi iniciado no seu nascimento, pois para a mãe

A menina nunca tinha sido dela. Voltava para o rio, para as águas-mãe. A filha nunca lhe coube, nem no tempo em que estava prenhe dela. [...] O aviso de que a menina estava apenas emprestada foi dado ali pelos sete meses. Uma manhã, Maria Vicêncio acordou ouvindo um choro de criança. [...] O choro vinha de dentro dela. [...] Caminhou intuitivamente para o rio e à medida que adentrava nas águas, a dor experimentada pela filha se fazia ouvir de uma maneira mais calma. (EVARISTO, 2003, p. 124-5)

E mais a frente afirma:

Ponciá voltaria ao lugar das águas e lá encontraria a substância, o húmus para o seu viver. (EVARISTO, 2003, p. 125)

Diante das considerações acima, encerramos este texto ressaltando que o livro transita em várias esferas da crítica literária, tanto na literatura afro-brasileira como na literatura feminina, mas que não o encerra só aí. O livro de Conceição Evaristo nos mostra a história pós-abolição do povo negro que luta para a melhoria de vida e para alcançar um espaço de igualdade com o branco; mas, a partir disso, também encontramos uma dimensão humana, pois navega no psicologismo do homem em toda a sua indagação da vida e da existência.

por Rodrigo de Agrela

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARRUDA, Aline Alves. Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo: um bildungsroman feminino e negro. 2007. 106 f. (Mestrado em Teoria da Literatura) Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte – MG.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Estudos de teoria e história literária. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010.
DUARTE, Constância Lima. Feminismo e Literatura no Brasil. Estudos Avançados. USP, Vol. 17, n. 49, São Paulo, Set/Dez, 2003.
DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura e Afro-descendência. In: Literatura, Política e Identidades: ensaios. Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2005.
______. (Org.). Literatura e Afrodescendência no Brasil: Analogia Crítica. Vol. 02. Belo Horizonte: UFMG, 2011.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Mazza, 2003.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: Um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas cidade, Ed. 34, 2000.
PAZ, Octavio. Os filhos do barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.