12 de fevereiro de 2013

Mar de mineiro, o desaguar em si


Cacaso não é um poeta fácil. Em sua escrita não cabe declarar adjetivos como ‘leveza’ ou ‘simplicidade’. O que há na escrita do autor mineiro, como em seu livro Mar de mineiro, publicado originalmente em 1982, é a escrita curta, imediata e sagaz. Escrita essa que se faz muitas vezes intolerante e ao mesmo tempo ácida. Porém, ainda assim, há de haver alguma explicação, ou não, para que se possa sentir o Mar de mineiro, para que tenhamos a possibilidade de sermos várias tantas outras coisas.

No primeiro poema do livro, Postal, o poeta traz consigo a sensação de perca, os leitores navegantes ficam sabendo que não existe mar algum e que a perca do caminho é tranquilo, e é ele quem pode nos tornar felizes.

                                             Nenhum mar.
Um domingo. Um tridente.
Dois cavalos. Meu coração segue cego e feliz.
                                             como
                     carta
extraviada


De imediato temos um contato complexo e amplo de uma imagem que, à primeira vista, não nos damos conta. E assim é em toda a obra. A amplidão dos assuntos tratados pelo eu-lírico, que ora passa despercebido entre todos, ora se preocupa com os valores familiares, tenta disfarçar o objetivo do poeta andante: ir de encontro ao mar. Aos poucos, o ponto de chegada vai ficando claro ante a perdição de Mar de mineiro, que não se sabe para onde, nem que caminho toma. Em alguns momentos é possível perceber a preocupação com o tempo, com a tentativa de apreender momentos que se passam ao nosso redor. Dessa forma o táxi é um dos objetos que se faz presente nos poemas para tentar nos guiar até esse local ainda desconhecido pelo eu-lírico. Como no poema No caminho da gávea, quando de dentro de um carro o poeta se põe a pensar:

A paisagem é impecável no seu
espetáculo simétrico e lento. O sol cochila
Do outro lado da rua e de mim
o mar deságua em si mesmo.


Esse momento, demarcado pela reflexão sobre si e o mundo, também vai estar presente em outros poemas, mas de forma irônica, como em Táxi, quando o poeta ironiza sobre as pessoas rudes:

O poeta passa de táxi em qualquer canto e lá vê
o amante da empregada doméstica sussurrar
em seu pescoço qualquer podridão deste universo.
Como será o amor das pessoas rudes?

Essa ironia não pode ser tida como algo negativo ou algo que queira rebaixar a condição da amante e até mesmo de sua posição, pois

O poeta não se conforma de não conhecer
todas as formas de delicadeza.       

Logo, o importante para ele é refletir sobre os momentos delicados entre os homens, é refletir como se dá a relação natural da humanidade e a relação que o poeta andante procura ter com a natureza quando se vê como um reflexo do mar. Tal relação, a delicadeza que tanto o deixa curioso, se perde em certos momentos quando se dá o Convívio entre os homens, como diz o poema de mesmo nome.

aos poucos
todos ficam pensando como será daqui a pouco
o enterro de cada um

Ou quando critica ferozmente, com poucas palavras, o homem que tem a opção de ser delicado ou não consigo próprio e com os outros. No poema A palavra do $enhor, por exemplo, a crítica é ferrenha além de irônica, sem necessitar de explicações:

No princípio
era
a Verba

Modificando o vocábulo para o feminino para dar uma nova significância à palavra, como se agora o vocábulo fosse um representante da ‘grana’. O poeta, através de suas reflexões, faz parecer inadequado a sua preocupação sobre a relação dos homens, já que alguns, que possuem o ‘poder’ de ajudar, só querem beneficiar a si. Isso tudo parece ser o grande problema, a falta de harmonia entre esses mesmos homens que não sabem ser apenas humanos, que não sabem lidar com a beleza que possuem em si. Por isso, a ironia ácida nos pensamentos do poeta andante se faz presente em vários outros poemas.

           

Não esqueçamos, pois, que a procura pelo mar de mineiro ainda não terminou. Praticamente não começou. Parece que entre tantos poemas divertidos, como em Salário mínimo –

De noite sou amante da empregada.
De dia sou patrão da amante.
           
–, o poeta viajante percebe que talvez não seja mais possível encontrar o desejado. Que talvez a sua realidade constitua apenas a qual já foi definida: desaguar em si mesmo, como o ponto de encontro com todo o resto, anunciando, dessa maneira, a sua quase desistência para entender os homens, o mundo, como fica nítido em a Máquina do tempo.


E com respeito àquele problema do
futuro acho que vou ficando por aqui

Talvez essa busca simplesmente nem exista. Talvez o que deseja o poeta, que só ambicionava procurar e entender a delicadeza que a humanidade possui, narrando todos os momentos que ele percebeu ou que ele viveu, não se pode saber ao certo, signifique apenas um viajante que narra o que lhe convém, talvez seja esse o seu prazer: observar. Mas acreditamos quando dizemos que o mar é a representação da sua salvação, para que não desague em si mesmo, para que encontrando o mar possa entrar em comunhão com o mundo e sentir a si próprio transbordar, como se tudo o mais não importasse e que assim seu coração possa ainda seguir “cego e feliz”, mas estando em contato com a natureza, com o todo, pois ela é a significância máxima para a sua existência. É com ela que ele deseja entrar em comunhão, já que as relações humanas lhe estão desacreditas. No poema O mar alguém lhe diz:

De noite, o mar sobe
O mar puxa o homem mau
E refresca o bom.

Esse homem que observa, mas que não sabemos se é bom ou mau, deseja desaguar em si de todas as formas. As observações realizadas, perante o seu percurso, é como se fosse uma forma de preparo para o encontro com o mar. E antes de se tornar O Fazendeiro do mar, ele passa por vivências em certas fazendas, demonstrando, a partir de observações do seu cotidiano, que tem de estar preparado para tudo, como diz em um dos poemas:

Aqui tem 3 tipos de veneno pra rato.
E 4 tipos de rato pra veneno.

Não sabemos, portanto, como se dará esse encontro, nem como ele poderá se preparar para tal. Porém, o fazendeiro encontra o que antes não tinha certeza e que aos poucos foi tomando forma: o mar, seu complemento, converge para ele como se fossem um só. No último poema, como um transbordamento dos sentimentos do poeta, fica evidente que, em sua comunhão com a natureza, ele pode ser um pouco de tudo, ora sendo isso, ora sendo aquilo. Daí, a criação das rimas que vão aparecendo e dos exemplos do que o mar é, e consequentemente do que ele pode vir a ser:
           
Ele então, Mar de mineiro, vai ser inho, vai ser ão, vai ser vinho, vai ser vão. Pode ser sovina, pode ser savana, também pode ser rio, pode ser horizontemagosenhatrampo, goiás, campinas, aquário e tantas outras opções. E assim finda o livro, como se tudo não fosse uma ilusão. Ilusão essa que só nos é permitida acreditar quando relacionamos o teor do poema com o mundo exterior, procurando um significado na palavra ‘mineiro’, e lembrando que em Minas não há mar, mas que é possível criar o seu mar, criar o seu mundo; como se cada pessoa fosse responsável pelos seus atos, pela sua significação no mundo. 

Cacaso é um autor pouco comum. Talvez seja daqueles poetas de quem se gosta ou se odeia logo na primeira leitura. Sua escrita é como uma dedada no olho, quase a nos cegar, mas que, às vezes, pode ser como um gracejo a nos fazer cócegas. 

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