5 de fevereiro de 2018

Entrevista com Marcela Dantés

Semifinalista do Oceanos, Marcela Dantés fala ao LiteraturaBR a respeito dos contos de “Sobre Pessoas Normais”

 

Por trás do avatar de cabelos desgrenhados não é possível ver o olhar da narradora. Esta é uma outra, não a Marcela que habita a nova sala, de velhos livros em novas estantes – alguns tristes como aqueles que, em uma enquete com mais comentários que curtidas, ela pergunta se seus amigos já leram. O seu, “Sobre Pessoas Normais” (Patuá, 2016), talvez seja um deles. Semifinalista do Prêmio Oceanos (que consagrou, no mês passado, a portuguesa Ana Teresa Pereira como primeira mulher a obter a honraria), a coletânea de contos é a estreia de Marcela Dantés (publicitária de formação) na prosa. Na entrevista concedida via Facebook, a autora revela o trabalho de linguagem por trás da composição dos seus personagens e mostra que, como eles, também ela partilha dos prazeres e frustações do seu ofício – esse sonho que ela tenta conciliar entre pagamentos de boletos e passeios com seus dois vira-latas.

 

Gosto muito dos textos do livro em que você emula a oralidade dos personagens. Como narradora, o que te move a suprimir tua própria voz ou de uma “terceira pessoa” e assumir a dessas “pessoas normais”?

Eu sempre tive muita curiosidade em relação às pessoas, ao discurso do outro. Sou dessas que nem consegue disfarçar, sempre muito concentrada na conversa alheia. Costumava me achar um pouco esquisita por causa disso, até o dia em que o Marçal Aquino me contou que pega metrô com fones de ouvido desligados, para ouvir as conversas dos outros sem culpa! Rs

Eu acho o português uma língua maravilhosa e me encanta muito os infinitos usos que as pessoas fazem dele. As corruptelas do dia a dia, os neologismos, os sotaques e manias de cada região. E eu tento trazer isso pra minha literatura, de uma forma que seja autêntica e que traduza um pouco esse encantamento.

E fico muito feliz quando alguém percebe esse trabalho, essa busca constante pela tradução da oralidade. Não sei se já posso falar em um estilo literário com apenas um livro publicado, mas se sim, eu acho que esse é um dos pontos mais importantes. Em resumo, eu acho que as personagens podem ter um discurso muito mais interessante que o meu e que, muitas vezes, a escolha das palavras, o ritmo do discurso, essa voz, é mais importante que os próprios acontecimentos da narrativa.

 

Você teve passagem pela oficina do Luiz Antonio de Assis Brasil, que assina o teu prefácio. Como foi a experiência e como é a tua relação com a escrita criativa?

Eu sou uma grande defensora das oficinas de escrita criativa. Não acho que elas vão transformar um escritor medíocre em um grande escritor, nem nada parecido. Mas acho, sim, que são um lugar muito frutífero para trocas e para o aprendizado.

Para quem, como eu, tem uma formação diferente de Letras, é um bom espaço para se pensar a literatura de uma forma mais crítica, para acrescentar àquela escrita intuitiva um processo um pouco mais racional e embasado.

A minha experiência na oficina do Assis foi a melhor possível: foi ali que eu comecei a sistematizar uma vontade que, até então, era um pouco bagunçada. Foi a partir das conversas com ele, dos exercícios propostos em sala de aula, das trocas com os outros alunos, que eu assumi essa vontade de ser escritora.

E o Assis é um leitor maravilhoso: ele é generoso nos comentários, faz observações que enriquecem absurdamente o seu texto e tem referências incríveis, que são de grande ajuda para o escritor.

 

Falando ainda dos paratextos do “Sobre Pessoas Normais”, noto uma certa afinidade entre tua prosa e a do Galera (que assina a orelha), talvez pela presença marcante dos cães em alguns contos eu muito me chamaram a atenção. Ele é uma influência aberta? Como você acha que tua obra dialoga com tuas referências literárias e pessoais?

O Daniel é um autor que eu admiro muito. Acompanho a trajetória dele há bastante tempo e acho que ele tem alguns dos melhores livros da literatura brasileira contemporânea. Ou seja, ele faz parte da minha formação como leitora e, inevitavelmente, como escritora. Mas eu não sei se essa referência se traduz em alguma semelhança literária, ainda que eu adore quando as pessoas digam isso. Acho que a questão dos cachorros é mais uma coincidência feliz. Sei que nós dois (nós três, né? Você também!) somos donos de cachorros e temos uma relação intensa com esses bichos, o que acaba se refletindo em nossa produção.

Acho esse tema das referências muito espinhoso. Rs. Eu sempre fui uma leitora voraz, desde bem pequena. Quando criança eu estudava em um colégio bem perto de casa e lembro que nas férias me ofereci para ajudar a bibliotecária a reorganizar a biblioteca inteira. Era uma forma de conhecer mais esse universo que me fascinava, e um conceito bem doido de férias.

Mas enfim, a literatura sempre me fascinou e mexeu de verdade comigo. Então, ler uma coisa muito boa costuma ser uma sensação agridoce: é muito bom, mas ao mesmo tempo é bem frustrante, pela sensação de que nunca vou conseguir fazer qualquer coisa parecida.

Quando eu estou produzindo, tendo a ler muito pouco, porque boas leituras acabam me inibindo e bloqueando um pouco. Tento, então, separar a leitora da escritora. E aproveito para ler enlouquecidamente quando não estou escrevendo.

Num momento em que tanto se discute a questão da representatividade no cânone literário, a pequena proporção de mulheres e sobretudo de livros de pequenas editoras contempladas com prêmios literários, o que significa para você a indicação a um prêmio como o Oceanos?

É óbvio que ser semifinalista de um prêmio como o Oceanos é maravilhoso, sobretudo para um livro de estreia. Confesso que fiquei um tempinho lendo a notícia meio incrédula e depois um tempão lendo a lista dos autores inscritos e não selecionados. Daí, quando eu achei os nomes do Mia Couto e do Valter Hugo Mãe concluí que o júri estava louco e fui fazer outras coisas.

Brincadeiras à parte, é uma sensação muito boa, principalmente em um ofício que pode ser tão frustrante, em grande parte do tempo. A gente sempre tem aquela sensação horrível de que está fazendo tudo errado, de que nosso livro é ruim, de que ninguém nunca vai nos ler. Principalmente sendo mulher e publicando por uma pequena editora. Daí, uma notícia dessas é uma pista de que alguma coisa de certo estamos fazendo, né?

Mas, a bem da verdade, é uma sensação bem parecida com a que eu sinto quando alguém que eu não conheço me manda uma mensagem, contando que a leitura do meu livro significou alguma coisa, que valeu a pena. Eu adoro isso, é um fôlego imenso para continuar um projeto que costuma nos roubar o ar.

 

Você continua escrevendo contos? Já tem em vista um novo volume? E o romance? Como a experiência da residência em Portugal colaborou para a escrita?

Logo depois do lançamento do “Sobre Pessoas Normais” eu fui convidada para a residência artística em Portugal, pelo Agualusa. E a minha contrapartida era justamente a entrega de um romance, então ainda não voltei a produção dos contos, estou imersa no desenvolvimento desse novo livro desde o ano passado.

Eu gosto muito de escrever narrativas curtas, acho que tem a ver com o meu estilo e com a minha linguagem, então com certeza vou voltar a isso em algum momento, mas tenho gostado do desafio do romance, que tem me demandado uma organização e um planejamento muito maiores.

Nesse sentido, a experiência da residência foi maravilhosa: o que mais pode querer um autor do que todas as condições necessárias para passar o dia escrevendo? Foram três meses muito produtivos, uma rotina completamente diferente da que eu tenho aqui no Brasil, onde eu trabalho oito horas por dia, chego em casa exausta, preciso arrumar a casa, sair com os meus cachorros, pagar boletos e só aí tentar encontrar forças para escrever um pouquinho.

Estar em um contexto em que sua maior preocupação é o seu livro, é maravilhoso, o mundo dos sonhos. Mas acaba, né? A gente sabe que não dá pra ser assim.