1 de fevereiro de 2018

O outro, o eu e o desejo do eu no outro

Em “Queda da própria altura”, de Sérgio Tavares, o desejar insaciável é motor e alvo da narrativa

Há uma tese do psicanalista francês Jacques Lacan (1901 – 1981) sobre o objeto pequeno a, que (simplificando) representa o objeto de desejo inatingível, às vezes também chamado o objeto causa do desejo. O ‘a’ em questão significa ‘autre‘ (outro), o conceito foi desenvolvido a partir do ‘objeto’ freudiano e da própria exploração da ‘alteridade’ por Lacan. Mas esse ‘a‘ também está ligado ao termo agalma (em grego, um ornamento). O agalma é um objeto precioso escondido em uma caixa inútil, e o objeto a seria o objeto de desejo que buscamos no outro. A “caixa” pode assumir muitas formas, as quais não são importantes, a importância está no que está “dentro” da caixa, a causa do desejo.

Ou seja, na interpretação livre da resenhista, o objeto do desejo é o desejo em si.

Foi o que me veio à mente ao ler “Queda da própria altura”, do escritor e crítico literário Sérgio Tavares. O desejar insaciável como eixo temático central do segundo livro de contos do autor revela-se a um tempo motor e alvo do texto. E assim como o objeto pequeno a está envolto em enigmas, também a narrativa está sempre beirando o abismo do mistério, o leitor a cada passo adentrando um labirinto de símbolos que terá de decifrar com os instrumentos do seu próprio imaginário. E esse é o ponto forte da prosa poética, é onde ela se impõe densa e límpida.

A primeira coisa que salta aos olhos é a divisão do livro em três partes – Impulso, Voo, Queda. Sendo que assim que lemos as primeiras páginas fica claro que este ordenamento é puramente retórico, já que os três elementos não existem isoladamente e estão presentes em todos os textos, pois o fim do voo é semeado no começo do impulso e vice-versa, seguindo o movimento contínuo de autoperpetuação das pulsões.

Cada uma das três partes, por sua vez, é precedida de pequenos relatos de introdução, tão curtos quanto enigmáticos, mas fundamentais para passar ao leitor algumas chaves para o entendimento do conteúdo, ainda que este seja desdobrado em variações no corpo dos contos, como círculos concêntricos causados por uma pedra lançada sobre a superfície de um lago. O motivo central destes textos introdutórios é sempre a estrada, as estradas, como metáfora da vida (e da escrita), sugerindo que o que importará nestes caminhos-textos a serem trilhados não é a linha de chegada, mas as muitas formas de galgar o percurso das histórias.

Os temas são investigados com o desassombro de quem disseca obsessões:

A insaciabilidade, a face corrosiva do desejo, o desvario – por um lado. Por outro, a implosão, o desaparecimento, o estranhamento de si mesmo e o estranhamento do outro como consequências sempre fatais da deserção dos próprios desejos.

Na primeira parte, Impulso, o texto introdutório apesenta a estrada e alerta: “toda estrada tem fim. nem toda.” Paradigmaticamente, já no primeiro conto “Evolam-se os barcos,” vemos o protagonista terminar antes da sua estrada. O desaparecimento do homem que não segue seus desejos ocorre literalmente, ele se desintegra por conta do total estranhamento de si mesmo.

O mesmo motivo se repete, invertido, em “Ofélia”: o querer insaciável em suas variantes mais fantásticas é  o motor da insurreição da jovem que renega o seu papel tradicional e paga com a morte, com o desaparecimento (esfarelamento). Ofélia se nega a aceitar as convenções, nega as suas “raízes”, ela quer o voo, do qual acaba vítima.

Em “Sono”, o estranhamento se volta para o outro. Um casal abandona o lugar natal em busca de sonhos maiores que acabam por não se realizar, pois as asas (do desejo) são podadas pela monotonia do cotidiano que infesta o amor. Esse estranhamento é ainda intensificado pela perda da memória, atrelada aos lugares e pessoas que deixaram para trás.

Na segunda parte, Voo, o texto introdutório nos previne que adentraremos “uma estrada desconhecida com trechos indefinidos, frases interrompidas, incompreensões, símbolos. a única certeza é que a estrada muda.”

Assim, no conto “Hera”, o mais longo do livro, repete-se o castigo do aniquilamento pelo desejar incontrolável, mas aqui assomam novos símbolos que se entrecruzam como o tempo do crescimento da hera ou como sombras que acompanham a iniciação sexual do protagonista: a mãe, o pai, a velhice, a morte.

É neste texto que cai também a frase que para mim resume a essência temática do livro, a fatalidade das nossas pulsões: “as mariposas são atraídas pela luz por encantamento. Mesmo que, na maioria das vezes, as leve à morte.”

Na terceira parte, Queda, emerge a figura do duplo, como espelho do eu, fechando as pontas do círculo temático do objeto pequeno a, que é o outro e o eu e o desejo do eu no outro.

A força singular da narrativa está sem dúvida alguma no seu caráter enigmático, no elaborado contar sem contar tudo, por meio de uma caligrafia segura que guia com grande força de tração pelas histórias até a diluição do texto junto com os personagens, desembocando num anticlímax no qual o leitor aporta perturbado e tonto, como que deparado subitamente com um abismo.

 

SÉRGIO TAVARES nasceu em 1978. É jornalista e escritor, autor de Cavala (Record, 2010), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura. Também foi premiado no Concurso Literário da Fundação Escola do Serviço Público (Fesp/RJ) e tem textos publicados, entre outros, nas revistas Cult, Arte e Letra: Estórias M, e no jornal Cândido. Atualmente mora em Niterói, Rio de Janeiro.

 

* CARLA BESSA estudou teatro na UNIRIO e na Casa de Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Trabalhou 15 anos em teatros alemães, austríacos e suíços, como atriz e diretora. Atualmente atua como tradutora literária alemão-português para as editoras brasileiras WMF Martins Fontes e Estação Liberdade. Escreve resenhas e contos e acaba de publicar o seu primeiro livro de contos, “Aí eu fiquei sem esse filho”, pela editora oito e meio.