17 de novembro de 2017

ENTREVISTA COM CINTHIA KRIEMLER

Neste bate-papo, Vivian de Moraes conversa com Cinthia Kriemler, que tem quatro livros lançados pela Patuá (o mais recente é o recém-lançado romance Todos os abismos convidam para um mergulho) e foi semifinalista com Na escuridão não existe cor-de-rosa, de contos, no Oceanos em 2016. Carioca residente em Brasília, a autora fala sobre o amor à literatura, machismo no meio literário e projetos em andamento. Confira a seguir:

LiteraturaBr: Como você começou a escrever?
Cinthia: Eu sempre li muito. E escrevia textos eventuais. Crônicas, em sua maioria. No ano em que fiz 50 anos, em. 2007, decidi que precisava fazer alguma coisa diferente na minha vida. Eu sempre fui uma workaholic, e queria desacelerar do trabalho. Sabe aquelas viradas de década na idade da gente? Os 30, os 40 e, enfim os 50. Sabe quando você ainda não sabe o que quer fazer, mas sabe que precisa fazer alguma coisa diferente? Eu sabia que aos 50 e poucos anos eu poderia me aposentar. Comecei então a pensar o que eu gostaria de fazer desse novo tempo (vazio) que viria dentro de pouco tempo. Havia, na Câmara dos Deputados, naquele ano de 2007, um concurso de literatura chamado Desafio dos Escritores. Eu participei com contos, gostei, fui tomando gosto e descobri que escrever era não apenas um hobby, mas uma necessidade visceral. Nunca mais parei.

E como é começar a escrever na maturidade?
Cinthia: Pra mim, foi um diferencial mais a favor do que contra. Embora o fato de ser jovem seja visto como um aval de novas possibilidades, como uma garantia de ideias sem freios, de renovação, eu percebi que a literatura é uma mãe generosa: tem espaço pra todo o mundo. E que ser mentalmente mais ou menos livre e criativo não é privilégio de idade. Aliás, eu não me preocupo com idade nunca. Se os outros quiserem, façam isso por mim (rs). Mas, brincadeiras à parte, a maturidade me ajuda. A vivência de sofrimentos, e etapas, e alegrias, e conquistas é, naturalmente, maior. Quantitativamente maior. Porque em termos de intensidade e qualidade não dá pra comparar uma vida com outra, Eu ainda estou descobrindo como é ser madura. Tenho infantilidades impressionantes. Mas na literatura, não. Na literatura a minha veia é densa, crua.

Você disse que há espaço para todos na literatura. Tem espaço para todas? Tem machismo na literatura?
Cinthia:
É só o que tem! Machismo dos mais velhos, dos mais jovens. Machismo até de gays, e, pior, de algumas mulheres. Algumas delas que gostam de se pensar muito contemporâneas, muito livres, mas que torcem o nariz para um palavrão, uma cena explícita. É uma grande confraria, a dos/das machistas. E quando se vê uma mulher “sentada à mesa” com eles, tem-se (ainda) a impressão de que é mais por permissão do que por igualdade. É a convite, e não por conquista. É um “claro que as mulheres são fodas”, desde que sejam eles a permitir. Claro, não são todos. Mas são muitos. Incluam-se aí os concursos e prêmios literários que premiam 70% de homens. Os júris, compostos por maioria de homens. As feiras e congressos literários, integradas por maioria de palestrantes homens. E ainda ter que ouvir perguntas do tipo: “Mas não seria porque os homens escrevem mesmo melhor do que as mulheres?” — Pasme-se, essa pergunta me foi feita por uma mulher. O pior do machismo na literatura é que ele ajuda a perpetuar, a deixar para as gerações seguintes a ideia de que é normal vivermos num mundo onde os homens apontam rumos e determinam destinos. Mas eu preciso fazer um alerta. Para mim, combater o machismo na literatura não é uma empreitada a ser levada por simples oposição, ou por revolta, ou por alguma adaptação enlouquecida da Lei de Talião. Eu não defendo uma escrita feminista. Defendo que a problematização das questões da mulher tenha visibilidade e respeito na (minha) escrita. Não é minha bandeira escorraçar ou debochar dos homens que escrevem e do que os homens escrevem, porque aí eu estaria fazendo mais do mesmo. Não me vejo separando, isolando este ou aquele, esta ou aquela. Nem definindo padrões para a escrita de mulheres. Eu escrevo literatura sobre mulheres. E sobre homens. E sobre crianças abandonadas. E sobre mulheres que apanham. E sobre idosos doentes. E sobre o que eu quiser. Só não acho que seja mais possível, por uma questão mesmo de inteligência, aceitar ou me calar diante do machismo — no meio literário ou fora dele. Inclusive quando esse machismo vem de mulheres que ainda escrevem para agradar e para servir. Que cultuam quimeras, hierarquias, obediência, medo. Que se aceitam menos. Que sejam indiferentes a outras mulheres.

Cinthia, sua carreira foi escrita na Patuá, pela qual você lançou, primeiramente, um livro de crônicas; a seguir, dois de contos e, finalmente, o recém-lançado romance. Você acredita que isso é aperfeiçoamento, que o romance é um gênero maior? Ou tudo isso é bobagem, você poderia ter escrito em outra sequência e cada gênero tem o seu próprio valor?
Cinthia:
Não, não acho que exista um gênero maior. O que eu quis foi realmente dar um passo adiante. Mas não no sentido de passo maior. Simplesmente eu quis testar a minha capacidade de escrever longamente, de escrever um texto mais comprido mesmo. Você passa a vida escrevendo textos de três, quatro, cinco páginas, e uma hora você se pergunta: eu escrevo pouco porque prefiro, porque gosto ou porque não tenho capacidade de concatenar mais ideias, e por um período mais prolongado? Foi uma experiência. Que, claro, requereu mais tempo, mais atenção, mais trabalho. Mas a mesma garra, a mesma ansiedade, o mesmo sangue nos olhos (rsrs).

Você é colunista da Samizdat. Isso lhe dá visibilidade?
Cinthia:
Pouca. Mas é uma publicação séria, de um cara muito sério, que é o Henry Alfred Bugalho. Não escrevo para a SAMIZDAT por visibilidade. É um carinho, um espaço que me foi aberto quando ainda ninguém tinha me aberto nenhuma porta na internet. Mas é um espaço onde eu conheci pessoas que me ajudaram a crescer e que são, de alguma forma, responsáveis por esse romance que hoje eu acabei de lançar. Trocas, dicas, oficinas que surgiram a partir da SAMIZDAT. E eu sou muito fiel aos meus amores (rsrs).

E quanto à internet em si? Ajuda ou atrapalha a boa literatura?
Cinthia:
Eu tenho um certo medo da palavra “boa”. Não creio que seja o meio que vá definir o perfil da literatura. Se um texto, um poema não for atraente, não disser a que veio, ele está morto em qualquer ambiente. Quando eu falo “atraente” é porque foi a terminologia mais próxima que eu encontrei para conceituar o gosto/não gosto. É assim que eu olho para o que eu leio. Embora haja detalhamentos que possam ser feitos, grosso modo é isso. As percepções das pessoas são diferentes. Dizer isso é clichê. Mas é uma das verdades com as quais me dou bem. Existem os que gostam dos dramas, os que gostam de terror, o que preferem o humor ou o sarcasmo. E existem os textos que atraem. Não importa em que gênero estejam. Mas eu não quero ser assim tão dura com a internet, retirando dela o seu valor. A internet é um tatame, uma arena, um palco. E como todo palco tem luzes, dá destaque e consegue reunir em torno de si uma audiência — maior ou menor, dependendo do espetáculo. Isso é bom para quem escreve. A questão é saber se quem está nesse palco está pronto para ouvir o elogio mas também a crítica, ambos tão necessários. E, nesse sentido, eu vejo a internet como um meio que permite fugas. Se eu não quiser ler a crítica, se eu não quiser discutir, se eu não quiser dialogar, se eu não quiser realizar a troca, eu deleto um comentário, eu me afasto, eu bloqueio, eu vou embora. Porque a internet nos faz, a todos, senhores do nosso gueto (um guetozinho de nada, mas que nós tratamos como um feudo). No cara a cara isso é mais complicado, e mais difícil. No cara a cara as pessoas pensam mais no que vão dizer, porque não há rotas de fuga. Talvez isso possa ser uma forma de encolhimento ou até de hipocrisia — o que não dizemos no cara a cara —, mas também nos obriga a pensar melhor no que vamos dizer, o que pode impedir muita uma agressão gratuita, muita provocação rasgada que tenho visto na internet. De um jeito ou de outro, eu adoro a internet.

Você escreve também ótimos poemas. Quando teremos um livro de poesia de Cinthia Kriemler?
Cinthia:
Eu não sou poeta. Eu escrevo alguns poemas. Posso acabar lançando um livro de poemas, mas, antes, preciso avaliar se não estaria cometendo um grande erro. Às vezes eu penso “é agora”. Chego a começar a estruturar o livro. Mas depois eu leio as poetas maravilhosas que estão por aí, essas mulheres que escrevem com o útero, com uma sensibilidade que estapeia a gente, e penso que é melhor ficar como estou, com a minha prosa. Mas não sei. Eu sou ariana. E, como toda ariana, sou de mudanças, sou metida a valente. Se me der na telha, se me der vontade (se o editor deixar, hahaha), uma hora eu faço.

Que autoras brasileiras contemporâneas você admira?
Cinthia:
Detesto listas. A gente se enforca com os esquecimentos. Alguns nomes, apenas, porque se fosse citar mais ficaria muito longo. Prosa: Micheliny Verunschk, Natalia Polessa, Sheyla Smanioto, Maria Valéria Rezende, Marcia Barbieri, Tércia Montenegro. Não vou falar você (Vivian) para não ser puxa-saco, mas fica registrado que gosto da sua prosa. Poesia: Lisa Alves, Adriane Garcia, Norma de Souza Lopes, Lázara Papandrea, Carla Andrade, Nydia Bonetti, Rosana Banharoli. Mas, repito, são, apenas referências. Tenho certeza de que estou deixando de citar muita gente boa.

Para encerrar, fale um pouco sobre o projeto “Novena para pecar em paz”
Cinthia:
A antologia “Novena para pecar em paz” surgiu de um projeto da Editora Penalux de publicar uma coletânea de contos escrita apenas por mulheres em cada um dos estados brasileiros, tendo como tema as questões do universo feminino. Recebi o convite do Tonho França e do Wilson Gorj para organizar essa antologia no Distrito Federal, e aceitei, muito honrada. Convidei, de cara, duas autoras: Maria Amélia Elói e Rosângela Vieira Rocha. Mas não queria que fosse uma antologia apenas com autoras minhas conhecidas. Arrisquei perguntar à Lisa Alves, uma poeta das minhas prediletas, se ela também não escrevia prosa. E ela disse: escrevo. Desnecessariamente, me mandou um conto para eu ler. Tudo de bom. Eu então comentei com ela que precisávamos ainda de outras autoras. Ela me sugeriu, de imediato, a Lívia Milanez e a Paulliny Gualberto Tort — semifinalista do Prêmio Oceanos deste ano (2017) não à toa. A Paulliny trouxe a Beatriz Leal Craveiro — que foi finalista do Prêmio Jabuti do ano passado com seu romance de estreia. A Beatriz trouxe Mariana Carpanezzi e Patrícia Colmenero. E nessa ciranda drummondiana as nove se amalgamaram. E posso dizer que são todas autoras sem meias-palavras. Tudo foi decidido em grupo: nome do livro, capa — cuja ilustração é da Mariana Carpanezzi –, cor da capa. E ganhamos dois presentes: Natalia Borges Polessa fez a nossa apresentação e Micheliny Verunschk a nossa orelha. Os contos são duros, intensos, fortes. Como suas autoras. O livro fala de gaslighting, de transexualidade, de homossexualidade, de abandono, de separação, de prostituição, de rotinas que matam, de incesto, de tortura. Não respire, porque não dá tempo. (Lançamento dia 4 de outubro).

Cinthia Kriemler é prosadora. Carioca, mora em Brasília. Graduada em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB) e Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social (UnB).
Publicou, pela Editora Patuá: Todos os abismos convidam para um mergulho (Romance, 2017); Na escuridão não existe cor-de-rosa (Contos, 2015) – semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Contos, 2014); Do todo que me cerca (Crônicas, 2012). É autora também de Para enfim me deitar na minha alma (Contos, 2010), pelo FAC-DF.
Publicou, pela Amazon Brasil, Contações (Contos) e Atos e omissões (novela policial).
Participa de antologias de contos e de poesia. Escreve para a Revista Samizdat.
Tem textos publicados em: Mallarmargens, Revista Philos, Germina, Escritoras Suicidas, Diversos Afins, Conto Afora, Revista InComunidade.