18 de julho de 2021

A palavra-pássaro de Sylvia Plath

This tornado loves you.
(Neko Case)

 

Quando li Ariel, o último livro de poesias escrito por Sylvia Plath, ocorreu aquilo que se pode chamar sinceramente de impacto. Esse impacto me derrubou por dois anos, tempo em que preferi esconder Plath no fundo da prateleira – era necessário algum tempo para absorvê-la. Então a curiosidade de saber como seria o único romance de uma escritora inteiramente realizada como poeta fez com que eu superasse o receio de ler A redoma de vidro.

Como dizem, o impacto que segue o primeiro normalmente o supera, com a vantagem de já nos pegar inteiramente expostos e fragilizados. A redoma de vidro pode ser lido como um romance de formação: livros que tiram um instantâneo do momento em que deixamos de ser algo para nos tornarmos outra coisa, nossa mutação; neste caso a transformação de Esther Greenwood de uma promissora estudante de literatura noiva de um futuro médico, em interna de uma clínica psiquiátrica. Sylvia Plath narra a eclosão do delicado casulo que envolve Esther em uma atmosfera de ordem e sossego, dedicando 234 páginas à sua lenta dilaceração e putrefação.

 

“Eu me senti muito paralisada e muito vazia, do jeito que o olho de um tornado deve se sentir.”

 

Esther chega a essa síntese na segunda página de A redoma de vidro: enquanto o livro durar estaremos encarando ininterruptamente o olho de um tornado destruidor, estúpido e arrebatador. De onde esse tornado nasce? Das saias engomadas, dos noivos futuros médicos, dos banheiros que, em um mundo sem Deus, se tornam templos de meninas e meninos que esperam, em cada longo e tedioso banho em suas banheiras de louça, sentir-se purificados e novos, como o bebê que um dia foram.

Também a protagonista é esse tornado e lança seus olhos a tudo aquilo que pode ser destruído, porque a desolação causada por uma força da natureza nada mais é do que seu incontrolável desejo de transformação:

 

“Agora, deitada na minha cama, eu imagino Buddy dizendo, ‘Você sabe o que é um poema, Esther?’

‘Não, o que?’, eu diria.

‘Um pedaço de pó.’

Depois enquanto ele estivesse sorrindo e começando a parecer orgulhoso de si, eu diria, ‘Assim como os cadáveres que você corta. Assim como as pessoas que você pensa que está curando. Eles são tão pó quanto o pó quanto o pó. Eu reconheço que um bom poema dure um tanto mais do que milhares dessas pessoas juntas.’

E é claro que Buddy não teria uma resposta para isso, porque o que eu dizia era verdade. As pessoas não são feitas de nada além de pó, e eu não via como aquela medicina exercida sobre aquele pó poderia ser melhor do que escrever poemas dos quais as pessoas se lembrariam e repetiriam para si mesmas quando estivessem tristes ou doentes e não pudessem dormir.”

 

Enquanto Esther vai paulatinamente sendo levada a crer que sua mente está indo a falência, nós, do outro lado, vamos dando força a certeza de que nunca a linguagem de Sylvia Plath foi tão exuberante. Então entendemos o que levou alguém tão inteiramente poeta a escrever prosa: experimentar a falha do ato de organizar acontecimentos na tentativa de expressar o que os ultrapassa – uma dilatação, proposta enraizada na poesia.

A cada nova sessão de lobotomia a que Esther é submetida testemunhamos sua mente reagir com mais violência à normatização covarde de sua vitalidade caótica: Esther não é louca porque não sabe contar a própria história, é vista como louca porque conta sua história da única maneira aceitável para ela mesma, em busca do “coração selvagem” que, ela sabe, bate dentro do seu corpo paralisado por vestidos de noite e enrijecido pelo laquê que deve domar seus cabelos.

Esther é louca porque quer tudo; à revelia do treinamento que nos torna capazes de escolher. Assim, ela não pode escolher entre a prosa e a poesia, porque ela já aprendeu que dentro de uma pulsa a outra.

 

“’Neurótica, ha!’ Eu soltei uma risada sardônica. ‘Se ser neurótica é querer duas coisas que se excluem mutuamente de uma única e mesma vez então eu sou neurótica como o demônio. Eu voarei entre uma coisa mutuamente excludente e outra pelo resto dos meus dias’”.

 

Quando somos crianças nunca nos satisfazemos em ser apenas uma coisa, e parecemos buscar ser coisas que se contradizem, como se quiséssemos experimentar a aniquilação da unidade e da coerência. Nesse sentido A redoma de vidro é também um romance de resistência: suas palavras insistem no voo entre limites. No entanto existe a gravidade (A definição de gêneros? A necessidade de encerrar a história, engendrando uma conclusão?), e dela não se pode escapar. Exaustas, cada uma das palavras será abatida pelos disparos do medo de morrer enquanto se toca o céu e seu infinito.

Esther Greenwood, uma hora, despenca das alturas e não resiste ao surdo baque do seu contato direto com o chão. O que fica? O vislumbre das asas de suas palavras, de seus travessões, de suas vírgulas e pontos de exclamação. Veremos as asas e, além delas, o céu que Sylvia Plath nos fez almejar.

 

Felipe Cruz

É professor e escritor. Publicou o livro de poesia Acúmulo (2016) e já contribuiu para publicações eletrônicas escrevendo textos sobre cinema e literatura. Atua também na área da produção audiovisual, da fotografia e da teoria literária.