11 de abril de 2017

A asa da xícara

 

A mão trêmula virou a asa da xícara para o lado de fora do pires. Descascou uma banana madura e a cortou em rodelas. Em seguida, despejou mel de abelha e flocos de aveia. Comeu em silêncio sem tirar os olhos da cadeira vazia. Foi até a pia e encheu um copo com água filtrada. Bebeu sem muito gosto, evitando olhar a mesa ainda posta.

A casa silenciosa, bem iluminada e arejada, meticulosamente limpa e arrumada. Sem pó no assoalho. Nada fora do lugar.

A prateleira no corredor estava repleta de pequenos bibelôs de porcelana. Eram pequenos habitantes de lembranças baratas trazidas de viagens alheias ou compradas em brechós ou em bancas de chineses. Apesar de barata, sempre foi bastante estimada.

Viajaram pouco. Não lhes faltou o desejo, mas também os empecilhos e as prioridades. A formatura da filha mais velha. Depois a da caçula. O enxoval da primeira neta vinda quando o genro perdeu o emprego. As despesas da filha caçula que foi fazer doutorado na Alemanha. E, como sabemos, os filhos precedem os pais em uma escala de importância. Pais são sempre culpados e devedores.

Deteve-se diante das fotografias na parede. As filhas pequenas, as filhas adolescentes, as filhas casando, os netos pequenos. Os cabelos ficaram ralos, vazios e brancos. Ela conservou na velhice a altivez de sua beleza juvenil. Os netos recém-nascidos no colo dela. O olhar dele de admiração para a filha mais velha se formando em Enfermagem, bem como sobre a caçula quando se formava em Engenharia Elétrica.

Quando a filha mais velha casou, transformaram o quarto numa pequena biblioteca. Lá também organizaram a estante com os vinis acumulados ao longo da vida. Procurou aquele o desejado e o colocou na velha vitrola, herdada do pai tocador de cavaquinho. Sentou-se na cadeira de balanço colocada ao lado de outra igual, ambas num cantinho reservado do cômodo.

O piano calado há tantos dias, não mais ressoava as melodias suaves de outrora. Lembrou das manhãs em que corriam para o quarto sorrindo. Aproveitavam-se da casa vazia para fazerem amor e algum barulho. Era tudo um pouco mais lento, mas ainda assim intenso. Seus corpos idosos faziam os velhos movimentos de modo mais brando e suave, deixando tudo com um sabor diverso do sexo da juventude. Quando terminavam, riam deitados no tapete. Chegavam a concluir que eram dois velhinhos sem vergonha.

A passagem do tempo não nos torna obsoletos. Nos exige um outro ritmo, uma nova maneira de redescobrir o gozo de se viver a dois. A eles não bastava o companheirismo bem-comportado dos estereótipos. Queriam a alegria dos corpos, a sedução das curvas ainda mais acentuadas pela idade e “a sensação de frio pós-orgásmico”.

Sorriu ao lembrar de como pedia para passar hidratante em suas costas e de como retrucava todas as vezes, mesmo amando fazê-lo dia após dia. Conhecia bem seu humor ácido e aborrecido e como isso maculava todos os favores que lhe fazia. Ela sorria paciente e nunca reclamava, apenas sorria. No fundo, gostava daquele azedume.

A saudade deveria ser proibida aos velhos. Casais idosos não deveriam enfrentar a dor da separação.

O disco chegou ao fim, mas não encontrou forças para virar o lado. Seu coração suspirava em saudades, em suas veias corria amarga tristeza. Apenas o vazio o preenchia com as lembranças de dias gloriosos. Todos os dias em que ela respirou eram dias gloriosos.

Os dias pareciam ter mais horas que quando ela estava ao seu lado. O tempo corria lento e feliz. Os dias ainda são longos, mas o tempo tornou-se um torturador implacável, não abrevia nem míseros segundos, não lhe diminui sequer um sopro. Chorou em absoluto silêncio.

Estavam longe de ser tipo casal ensaiado, daqueles fingidos, típicos de peças publicitárias, beirando a perfeição. Aliás, existem casais perfeitos? Ela semeava pequenas intrigas, ele detestava desfazê-las. Ela era generosa e caridosa, ele amarrado e materialista. Ela devota de todos os santos, ele ateu convicto (pela simples incapacidade de acreditar).

As diferenças motivaram discussões, brigas, divergências. A diplomacia só foi estabelecida com o nascimento das filhas. Elas não precisavam do mal de suas diferenças, mas do amor que nutriam para além destas. Com isso, as meninas cresceram livres e amadas, presas a um único dogma, a saber a felicidade. Não a felicidade enquanto ideal pós-moderno, mas como uma coleção de frustações, erros e acertos. Quando tiveram consciência criaram suas próprias resoluções, escolheram as suas crenças. Dúvidas e inseguranças as assombrassem em um ou outro ponto do caminho, mas entenderam, desde muito cedo, por lição dos pais, que os percalços são parte do processo.

Fizeram um bom trabalho, concluiu. Formavam uma boa dupla. É pelas filhas que suporta a solidão. Foram suas muletas quando a esposa adoeceu. Foram seu alicerce quando começou a esmorecer.

Era segunda-feira de carnaval, quando a olhou nos olhos uma última vez. Trocaram confissões naquele olhar. Ele abriu mão e a deixou ir. Ela parou de resistir e deixou-se ir. Foi testemunha de seu último suspiro. Cúmplice de décadas de amor e cumplicidade.

Houve um momento, breves segundos ou longos minutos, no qual o mundo decidiu lhe dar alguma intimidade, um momento de silêncio, um momento de rendição, imerso em dor, amor e saudade.

A filha caçula correu para os seus braços, a filha mais velha deixando os braços do esposo, também correu para seu abraço. Os três em um só pranto sentiram aquele instante, mesmo sem sentir a pretensa calmaria que antecede a dor.

Os dias arrastados após sua partida testificavam que ela não partiu de todo. Seguia sendo parte de quem são. Havia vida em seu legado genético, humano e afetivo.

Uma existência prolongava-se em enfeites pela casa, no cheiro deixado sobre o travesseiro, nas roupas penduradas no armário, no piano em silêncio no canto da biblioteca, nos romances policiais organizados em ordem alfabética na estante sobre a escrivaninha, no diário ainda por escrever. Continuaria ali por muitos anos, guardada na lembrança impressas nos objetos, fotografias e paredes.

Ele lembraria da maneira como gostava de passar o cabelo sobre o seu rosto. Na xícara com asa sempre para o lado de fora da mesa. Lembrará dela nos passeios pelo bairro, nas idas ao supermercado, nas prateleiras de shampoo. Lembrará do riso largo e no choro frouxo.

Ali no canto da sala, ouvindo a agulha da vitrola arranhando o disco, compreende, pela primeira vez, que a saudade não é sua inimiga, mas apenas uma nova forma de amá-la.

Levantou-se, secou as lágrimas e pôs o chapéu. Atravessou o corredor carregado de memórias, calçou as alpercatas deixadas na soleira da porta da rua, abriu a porta e ganhou o mundo.

 

Ivandro Menezes
Nasceu em Mamanguape, Paraíba, em 1980. Hoje vive em Paulo Afonso, no sertão baiano, onde leciona na Universidade do Estado da Bahia. Cresceu entre os livros e discos do pai. Formou-se em Direito e hoje estuda Sociologia. Escrevia no jornal da escola, participou de alguns pequenos concursos literários e, recentemente, se aventura a escrever contos.