28 de março de 2017

Pimenta

 Ao meu pai.

 

Tudo começou quando no início daquele ano o Pimenta havia sido preso. E não foi pela mais injusta das causas, uma vez que, àquele tempo, ele não era tão considerado flor que se cheirasse. Desde menino era metido nas confusões mais prosaicas da cidade. Ora, que não foi a mais temível das novidades a sua prisão naquele dia. E as circunstâncias para tal ainda são mais assombrosas, pois a folga com que Pimenta tratava os homens da lei o punha em um patamar de ser extremo odiado: faltam os respeitos com a autoridade propriamente dita, faltam os respeitos com os demais. E não foi a toa. Estava ele jogando bola no campinho da vila, era uma manhã de domingo. Sempre jogava ali com os outros homens e eram aqueles campeonatos de firma. Não o chamavam por amizade, tenhamos isso em mente: o que mais lhe condicionava esses convites era a sua habilidade como ponta esquerda. E que se buscasse logo ele, antes de qualquer um. Pois foi naquele domingo, o alemão da oficina lhe deu um carrinho por trás enquanto Pimenta ia sem barreira para o gol do time adversário. Todos vaiaram, uma vez que a jogada era uma boa, mas o silêncio foi maior quando o Pimenta se levantou e encarou animalesco o alemão da oficina. Antes deste se levantar, ele já o agarrara pelo colarinho e lhe socou duas vezes o nariz até uma cascata de vermelho vivo começasse a brotar de suas cavidades. Jogadores de ambos os lados correram para segurá-lo. Alguns tentaram vingar o pobre alemão, mas desistiam ao voltar do juízo e perceber que quem lhe esmagara às ventas foi o Pimenta. Este, ainda injuriado, resolveu não continuar com o jogo que, para ele, já se tinha perdido. Tirou a blusa ainda em campo e pulou a cerca que ficava atrás do gol. Dirigiu-se a sua residência e, para tanto, deveria atravessar a feira das frutas. Todos o olhavam como se soubessem do ocorrido no campinho. Andou indiferente aos olhares que lhe saltavam a frente. Pisou em tudo e em todos, diga-se de passagem: sua passada era medonha. Abriu a porta bruscamente. A senhora sua avó tremeu no quadro da parede quando seu neto Pimenta se jogou na rede estirada na sala. Pôs-se aos roncos logo em seguida acordando de súbito com pancadas na porta. Levantou de mau gosto e se deu de cara com a autoridade vigente. O sargento era aquele tipo de policial exemplar. Um pai de família correto, era o que se dizia na corporação, todavia muitos encucavam a fofocar nos recantos da cidade que suas batidas na rua dos cabarés perto da casa d'aula eram apenas pretextos para visitas libidinosas. Dormia com as putas e chegava em casa na desculpa que o carnaval de cassetetes e pontapés nos bêbados maltrapilhos havia virado até o galo cantar na terceira dobra do sino da missa. Pois foi que o Pimenta jogou essas verdades na cara do sargento como quem vomita pecados nas batinas do padre. Foi com tanto gosto que o valentão ficou da cor que lhe rendera o apelido. Houve impropérios que renderam títulos indizíveis à ambas as mães. E uma faca peixeira se fez riscar no chão de barro duro da calçada e quem a puxara foi o militar. Os vizinhos lotaram as janelas e as portas. As velhas do terço esqueciam as penitências nos fundos do oratório e arregalavam olhos para a luta na frente da casa do Pimenta. Como estaria a comadre? Diziam. Mas a comadre estava enfurnada na cozinha junto da filha mais nova. A que quis algo com a vida, pois o Pimenta esquecera até Deus. O pai morrera há pouco e nunca se soube de quê. Naturalmente ou coisa da idade. E o sargento, relembrando essa passagem particular da vida do Pimenta, o convidava a entrar na briga para poder fazer companhia ao pai no além. O valentão recusara e ainda disse que no estalar do meio dia há de ver aquela peixeira entalada no cangote seco do sargento. Mas nem que precisou esperar tanto, pois de uma golpeada no ar, o Pimenta desarmara o sargento e fez a peixeira dormir, não no cangote, mas no seu bucho. Caiu se tremendo, enquanto o Pimenta entrava dentro de casa para se lavar daquele sangue. O povo se reuniu em volta do agonizante militar e logo começou a se despertar a latomia. E nem muitos homens faziam questão de vingar aquele que, menos para a corporação, era um verdadeiro duas caras. Fizeram só o bem de escrever para o comandante da polícia informando dos acontecidos. Carta anônima, mas que todos sabiam que fora escrita pelo professor, conclamava as fortes autoridades provinciais a tomar partido para a prisão do elemento conhecido por Pimenta, perturbador da ordem e maldizente das coisas de Deus e dos homens. Claro que por estes motivos pífios, o senhor comandante recebia enxurradas de cartas, telegramas e afins, devido às desordens de elementos valentões que correm soltas por aí. Além do mais, àquele tempo, as preocupações militares estavam mais voltadas para as tais colunas de insurgentes que debandavam país a dentro denunciando os crimes da república. Todavia o bilhete anônimo, do professor, ressaltava como um arremate de soneto, ao final, perto da assinatura, o assassinato do sargento. Não poderíamos descrever a reação do comandante, mas podemos presumir que foi de extrema ira, porque dois dias depois um contingente de cem soldados batera à porta do Pimenta e nenhum segurava a riscadora faca peixeira, mas preferiam a explosão de pólvora do papo amarelo apontado nervosamente para a cara vermelha do valentão. Foi conduzido sem mostrar contragosto. Levado feito cristo, e ponho esse adjetivo em minúsculo uma vez que a vida do indivíduo aqui representada não lembra, nem amiúde, a do bom filho de Deus vivo. Falo é das roupas surradas e das grandes cordas de trança que volteavam o seu pescoço e tronco, fortemente repuxadas de quando em vez pelos os soldados iracundos que pisavam, no remorso, a areia enegrecida do sangue do irmão de corporação. Até a cadeia, foi uma procissão seguida de ladainhas de impropérios e orações de vingança e, quando chegou lá, foi jogado às celas mais fundas e solitárias, onde apenas lhe faziam companhia o cheiro de merda e os ratos gabirus. Os soldados lhe cercavam por fora da cela, encaravam-no constantemente e, como política correcional, lhe davam surras diárias que variavam entre duas e três vezes. Os banhos eram piores, sendo administrados de maneira difusa durante o dia ou a noite, sempre com um balde de água gelada indo de encontro ao espinhaço riscado de chicote do Pimenta. Contam-se dois meses desde essa prisão até o dia dos revoltosos. Por definição, estes eram os que constituíam as colunas de insurgentes mencionadas anteriormente. Elas cruzaram o país e uma delas aportou naquela cidade esquecida no sopé de uma serra grande. Tomaram de assalto, na hora pagã da meia-noite, a estação ferroviária e trataram de cortar logo os fios de telégrafo, além disso, fizeram balbúrdia na praça, saquearam bodegas e tocaram o terror entre os moradores avizinhados do prédio dominado. Todo o alvoroço fora causado por nada mais que sessenta e oito homens, parcamente armados e com uma fome de batalhão. A sua força, porém, provinha de sua possível irmandade com o diabo, pois corria a solta que os revoltosos eram comunistas, naquele início de século conhecido como o partido do cão que a santa da terra lusitana, no ecoar das profecias dizia que iria espalhar os erros pelo mundo. Se o posicionamento de Deus era anticomunista, não se poderia salientar naquele momento impróprio, uma vez que nas terras onde os judas, tanto tadeu como iscariotes, perderam as galochas, pouco importava de que partido o sujeito vinha; a aliança com a família e com Deus era a única aceitável, fora isso, perigava o indivíduo passar por processo de excomunhão. Mas o certo é que quando o dia nasceu, um grupo de dez revoltosos caminhou ao longo do trilho e deu com a cadeia pública. Por certo, poder-se-ia admirar o fato de não encontrarem nenhuma resistência, pois é que o contingente de cem homens fora destacado para prisão do Pimenta e só isso. Não havia nenhuma linha sobrando com outra ordem anexa que os fizesse permanecer naquele lugarejo por mais tempo, determinando que o lugar voltasse a ter os mesmos cinco soldados de sempre no que antes eram sete, mas um morreu, no que seria o sargento, e outro estava de vigia na estação ferroviária e, vendo-se munido apenas de uma garrucha descarregada e uma faca de cozinha para descascar goiaba, desertou, caindo no esquecimento da terra árida para não enfrentar a armada revoltosa vindo em sua direção. Ainda sobre os revoltosos que se dirigiram a cadeia, quando chegaram lá que viram a nenhuma resistência imposta, trataram de anexar a cadeia pública aos seus domínios, fazendo agora de refém dois prédios públicos. Decretaram a libertação dos presos, colocando-os sob o juramento de servirem a coluna pelo tempo que for necessário. Entre eles, o único que o juramento ecoou pelas paredes do prédio foi o de Pimenta. Armou-se das garruchas e papos amarelos alocados no quarto das munições, vestiu-se de roupas militares e voltou com a trupe de revoltosos para a estação, que de dez homens na vinda, contava agora com vinte e um, sendo curioso que um dos soldados acabou se juntando a tropa e ficando por solitário na cadeia pública a mando do comandante. Por três dias seguidos, a estação ferroviária e o prédio da cadeia ficaram cercados não por soldados, mas por populares. Muitos até começavam a entrever a força daquele contingente vagabundo que agora contava com o Pimenta entre eles, alguns até abriam o bico para fomentar o insulto de que como o partido era do cão, o cão tinha de estar entre eles. Injúrias que o valentão, e agora revoltoso, apenas ouvia, pois, imerso na lama daquela cidade, pensava, se for para condenar todos, ninguém escapava a não ser a santa de sua mãe que nesse momento estava na margem do rio lavando as roupas do filho. Só que chegando o canto do galo do quarto dia, ouviram-se, descendo a serra o soar da corneta militar anunciando a chegada do exército da república no lugarejo. Murmúrios que bateram às portas da estação ferroviária davam conta que traziam até canhão e o primeiro assalto seria na cadeia pública. Com fé, pelo meio da manhã, os republicanos atacaram a cadeia e tomaram-na de volta em nome do presidente, plantaram quartel ali mesmo e planejaram o ataque à estação ferroviária. No mais que o zumbido de luta chegou aos ouvidos da tropa de revoltosos, aqueles que foram libertados da cadeia pública, incluindo o soldado convertido, correram soltos pelo lado contrário ao da cadeia, rumando para os matagais distantes da estação. O contingente agora contava com apenas sessenta e nove homens, pois o Pimenta foi o único que não arredou pé e, por isso, logo foi promovido a capitão vindo a liderar um pequeno batalhão, se assim pode dizer, de vinte e dois homens para vigiar o trilho. E lá foi valentão através dos dormentes em rumo da batalha, trilhando solitário a frente de sua tropa. O papo amarelo com mira danada, botando a goela de ferro em tudo que se mexia. Sem encontrar nenhuma resistência, o Pimenta montara um acampamento no meio do caminho, elegeu dois de seus melhores para ficarem de vigia. O pingo do meio-dia deu no topo da moleira e a bala começou a riscar aquele calor de sertão. Vinham balas do lado dos republicanos, todavia os tiros pareciam querer ganhar os céus e não as vísceras famintas dos revoltados acampados. O Pimenta entendera a pretensão dos soldados: era dá corda de que eles eram muitos e a bala comia, uma tentativa de afugentar e amedrontar os revoltosos. O valentão ensinou para os seus soldados e logo, ao escorrer pela mata para trás das trincheiras inimigas, deu por fim, com duas estocadas para cada peito, as brincadeiras dos soldados ali a postos. O trilho ficara seguro pelo resto do dia e por toda a noite. Das pequenas batalhas que se tinham ouvido, todas foram vencidas pelo contingente do Pimenta. Pois foi que na manhã seguinte, a derrota se fez nascer com o sol. A boca de fogo do canhão surgiu no trilho e o rugido de fumaça ecoou pela manhã destruindo a barricada feita pelo Pimenta. Atrás daquele monstro, vinha um pouco mais de um cento de soldados, alguns até que participaram da prisão do valentão alguns meses antes. Este mesmo, vendo a sua tropa sendo devastada pela boca de fogo quis ainda engendrar uma retirada digna. Diga-se de passagem, e isso para quem estava próximo do Pimenta pode confirmar, que o terror nos olhos do valentão era um tipo de coisa que não poderia se ater como familiar, outrora esse olhar nunca se fez perceber em público, talvez fosse aquela a única vez que se veria o Pimenta com vida, mas estes que pensaram isso estavam errados: ele bateu em retirada no rumo da estação junto com o único soldado sobrevivente. Da praça da estação todos viram a carreira do Pimenta para a barriga da estação ferroviária, carregava dois papos amarelos e uma garrucha no cós da calça. O chefe do batalhão, sentado em uma cadeira de couro, fumando um cachimbo muito do fedorento, viu os seus soldados voltarem. Deliberaram sobre a valentia desses soldados da liberdade, culminando com um discurso dizendo que é assim que são feitas as grandes batalhas. Mas o desfecho foi mais impactante, uma vez que depois de longos três meses e meio, os revoltosos deveriam deixar a estação ferroviária. Muitos não entenderam essa nova ordem, mas como o próprio comandante consentia a cada um, há sempre uma vitória esperando, não importando o lugar, é claro. O Pimenta vira toda a cena se desarrumando a sua frente e, no fundo do seu coração, alguns irão crer, acreditava que a fuga era iminente não só para a sobrevivência de si e dos soldados, mas pelo ideal. Todavia, era impossível conceber que o grande valentão da cidade acreditaria em tal falácia de luta social, como era visto naquele momento do tempo; mas muitos, a posteriori, começaram a discernir que a luta para o Pimenta havia ganhado proporções inimagináveis, sendo que, por um lapso do destino, ou capricho, aquele que só era visto como útil e descartável nas partidas de domingo agora tinha um papel fundamental em uma revolução nacional; acabara construindo um respeito entre os seus companheiros revoltosos e, de fato, via um valor em si e nos outros que nunca havia visto. Sim, uma conclusão bela e plausível, mas a fuga também é sedutora se, depois daquele quiproquó, só restasse a cadeia como destino. Mesmo o mais idealista daquela cidade poderia imaginar essa última alternativa como correta. No fim, decidiu-se pela fuga. A boca de fogo já era possível de se ver ao fim da reta do trilho. Vários soldados com seus fardões azuis marchavam imperiosos enquanto a corneta militar ecoava pela praça da estação o som do apocalipse. O traço da fuga requeria uma tocaia para os soldados da república, então doze homens ficaram ali e tentariam segurar o máximo possível a boca de fogo e seu séquito. O restante seguiria pelo lado oposto da batalha. A bala zunia pelo céu dispersando os curiosos do redor da estação, enquanto o resto dos revoltosos corria no rumo do leste. Foi aí que o Pimenta parou no meio do caminho e olhou, eternamente, para a estação ferroviária agora sitiada pelos homens do presidente. Não tardou para as balas quererem beber seu sangue e nisso o valentão, logo, correu pelos pés de manga e bananeiras perdidas nos quintais dos outros. No mais, enquanto a turba de curiosos corria rua acima, uma mulher com camisas na mão corria na direção do tiroteio. Era uma louca? Pois aquela era uma mãe e seguia até se misturar com os soldados vitoriosos da república, expondo com veemência os corpos dos revoltosos mortos, em um espetáculo macabro e condenado até pelo o mais fervoroso conservador. Os corpos foram enfileirados na calçada da estação. A mulher passara a vista em cada um dos rostos sem vida: não vira o seu filho, graças a Deus. Então caminhou lentamente para aquela direção em que se fez a fuga dos revoltosos e, como se a brisa lhe contasse um segredo, um sorriso ganhou o horizonte longe dali para todo o sempre.