21 de fevereiro de 2017

Foucault ficcionista

Diz-se, nas esquinas da filosofia, que uma das frustrações de Michel Foucault é não ter escrito um livro de ficção. No dia de sua morte, porém, foi encontrado – entre os manuscritos de “Vigiar e punir” – um conto datilografado, sem título. Agora, pela primeira vez, as três páginas da história criada por Foucault são trazidas a público.

*

Entra como se o consultório fosse uma praça e esperasse por ele um grande público.
– Por que tanta agitação, homem?
– Chegou o dia!
– Dia do quê? Martha, por favor, busque um copo d’água pro senhor Sócrates.
– Hoje vou falar tudo, Sigmund.
– Meu trabalho é ouvi-lo.
¬ – Lembra que me disse na última sessão “Esta história de você acreditar que é uma espécie de parteiro de ideias não está contribuindo pro caminhar do nosso tratamento”? Pensei nisso, sabe. Precisamos evoluir.
– Pois será muito bom porque, confesso, estou cansado das suas perguntas sem fim, das suas refutações, da sua ironia. A sessão não rende. Sua mãe era parteira, certo?
– Sim, ganhou a vida dando à luz alheia. Era muito conhecida em Atenas. Mas o que isso tem de relevante?
–Abandonar essa convicção de que é um obstetra conceitual demonstra que o Édipo em você está cicatrizando.
Enquanto Freud anotava num caderninho e balançava a cabeça para cima e para baixo, Martha voltou. Sócrates observou cuidadosamente o copo, cheirou a água e, antes de beber, experimentou o líquido com a ponta da língua. Assim que a esposa de Freud bateu a porta atrás de si, ele se esticou no divã. Estava em análise há quase um ano e, pela primeira vez, falaria deitado e não sentado na poltrona em frente ao psicanalista.
– Estão querendo me matar.
– Fiquei sabendo. Dizem que está doutrinando a juventude.
– Sim, de modo grosseiro, é isso.
– Mas você me disse inúmeras vezes que não temia a morte, que o lugar pra onde iria é melhor porque lá poderia filosofar e encontrar a verdade...
– Eu sei o que disse. Aliás, sei muito bem. Talvez esteja aí a grande questão.
Toma a sala um silêncio penumbroso. Freud franze as sobrancelhas, liga o ventilador de teto, cruza as pernas e pede, sussurrando, que o paciente fale mais sobre aquilo. Sócrates puxa a túnica sobre os joelhos e suspira.
– Falar da morte enquanto ela, teoricamente, está longe, é uma coisa. Vê-la morder seus calcanhares é completamente diferente. A iminência da morte faz a gente repensar a vida.
– Um instante, por favor.
Para não esquecer a frase concebida a partir da fala de Sócrates, Freud a anota: “Se queres suportar a vida, prepara-te para a morte”. E pede para o paciente prosseguir.
– Em meus ensinamentos, discorri muito sobre a alma, a essência do ser humano capaz de discernir entre o bem e o mal.
Freud solta uma risada sutil. Rapidamente olha para Sócrates e sente-se aliviado porque o paciente não percebe.
– A alma como sede do conhecimento e do caráter. A alma como parte imortal do homem. Estou certo de que persuadi um número considerável de pessoas.
– Quem não deseja ser persuadido sobre esse tipo de coisa? Eros tentando devorar Thânatos! Mas o ponto central, caro Sócrates, é que a alma sendo tão importante...
– O corpo se atrofia. Eu sei. Agora eu sei. Tive que me aproximar dos sessenta e cinco anos pra descobrir isso.
A voz de Sócrates veste mais nitidez, como se as palavras fossem uma avalanche invertida. O volume, inclusive, está acima do necessário.
– Graças a mim, muitos acreditam que a vida tem um objetivo: alcançar a felicidade. Que a felicidade está relacionada a uma vida virtuosa. Que a felicidade é possível se as pessoas conhecerem a si mesmas.
– Sentido, felicidade, virtude.... Prevejo que seus conceitos serão o ponto de partida de um gênero literário bastante rentável. Um tipo de literatura do qual não quero fazer parte. Como é possível conhecer a si mesmo, amigo? Nossa mente é semelhante a um iceberg, já viu algum?
– Só por fotos.
– A parte de cima é a consciência. Ao que está submerso não temos acesso facilmente. A não ser com a psicanálise. Atos falhos, chistes, sonhos...
– Por falar em sonhos, tive um muito estranho antes de ontem. Não me lembro dos detalhes. Lembro apenas de um homem vestido de negro, capuz e facão...
– Hum... tente recordar: é dia ou noite?
– Acho que é noite, madrugada. Sim, madrugada. Ele invade as casas, pula os muros, as cercas, os portões.
– O que mais?
– E mutila as pessoas: corta glandes e clitóris. Não as mata.
– E faz o que com esses órgãos genitais?
De olhos fechados, Sócrates pede para Freud aumentar a intensidade do ventilador. Os pés já estão livres das sandálias de couro.
– Tem dois baús de madeira em casa. Quando os baús estivessem completos, ele os queimaria em praça pública.
Novamente, Freud toma nota. Desta vez, Sócrates pergunta sobre o conteúdo.
– Montando o quebra-cabeça. São inúmeras peças. A maioria ainda está escondida. É a parte de baixo do iceberg, como disse. Mas, pelo que pude perceber até agora, creio que há algo te pressionando de dentro pra fora. Algo como culpa, talvez.
– “Sócrates, tu és o mais sábio entre os homens”. Não sei porque acreditei naquele maldito oráculo.
Freud apanha uma carteira do bolso interno do casaco, retira um cigarro e traga longamente. Ao soltar a fumaça, observa o espelho oval, na parede, acima de Sócrates.
– Narciso! O ego tomado como objeto de amor. Você só levou essa frase adiante por conta disso. Sócrates, caro Sócrates, me perdoe, mas preciso expor desta maneira. Você sempre diz que a única coisa que sabe é que nada sabe. Aliás, foi por essa razão que a sacerdotisa te concedeu a chancela da sabedoria. Mas isso não passa de um jogo de palavras. No fim das contas, você é um grande ególatra.
Sócrates se levanta abruptamente. Com o indicador direito esticado, grita:
– Se não bastasse o que dizem de mim os democratas de Atenas! Não preciso escutar esse tipo de calúnia.
– Natural esta reação. Deite-se, por favor, amigo.
Freud expõe longamente sobre os mecanismos de defesa da mente. Enquanto escuta, Sócrates parece contar os livros na parede oposta ao divã, nove prateleiras de madeira. Depois de assimilar a palestra exclusiva, ele atende à solicitação.
– Eu sou uma farsa. O cavalo de Troia personificado. Sabe do que mais me arrependo? Do conceito de daimon. Acreditei que o daimon era o freio dos impulsos pra chegarmos à moral adequada. Acreditei que esta voz interior que diz o que não devemos fazer, sobretudo em relação aos prazeres do corpo, podia nos mostrar vida que merece ser vivida.
– Você castrou o ser humano.
O filósofo leva as mãos ao rosto ao mesmo tempo em que contrai as pernas. O termo “algoz” escapa da sua boca.
– Leonardo Da Vinci, muito antes do helicóptero ou do avião, criou uma máquina voadora. É bem verdade que sua máquina não voou, mas o protótipo estava lá.
– Vá direto ao ponto, Sigmund. Não precisa enfeitar as palavras, construir comparações. Seu Nobel de literatura já está ganho.
– Quero dizer que, como Leonardo, você também é o precursor de uma máquina. Você inventou o maior instrumento de dominação da história da humanidade: o pecado.
As lágrimas escorrem e penetram pela barba espessa. Sócrates pede um lenço. Freud encontra-o no bolso dianteiro da calça e, ao tirá-lo, deixa cair uma ampola. O filósofo olha para o pó esbranquiçado caído no tapete bordô. Freud diz que se trata de um experimento, que receitará duas doses diárias a ele para que se sinta mais animado. E alerta que não é aconselhável ultrapassar essa dosagem. Tampa o frasco, devolve-o ao bolso e emenda:
– Uma notícia boa sobre sua teoria: adaptei parte dela, fiz algumas alterações no tal daimon e chamei-o de superego.
– Nome um tanto panfletário, não?
– O superego é a parte repressora do aparelho psíquico, é como se fosse o pai internalizado do sujeito. E está o tempo todo em conflito com o ID, princípio de prazer. O produto desta guerra é o ego; o ego é o que se manifesta. Perceba, tentei corrigir seu erro: as pulsões não têm que ser castradas, mas orientadas. A saúde mental está no equilíbrio entre o princípio de prazer e o princípio de realidade.
– Não estou aqui pra ouvir sobre suas elucubrações, Sigmund. O que me preocupa é que minhas ideias, plantadas há anos, têm sido religiosamente regadas por muitos. Sobre isso, um menino me preocupa mais. Platão. O que tem de brilhante, tem de teimoso. E está levando a sério demais o que falo.
– Ah, o falo...
– Como?
– Continue.
– Ele interpretará de um jeito bem peculiar meus ensinamentos, escreverá sobre eles e seus textos ganharão proporções colossais, tenho certeza. Platão gosta de holofotes.
– Converse com ele, diga que você se equivocou.
Freud olha para o relógio. Sócrates percebe, levanta-se rapidamente e se despede. O psicanalista aconselha o amigo a não andar sozinho pelas ruas, principalmente à noite.
– Alguns discípulos vêm fazendo minha guarda.
Assim que chega em casa, Sócrates manda chamar Platão. O jovem ouve atentamente e diz que não, que jamais faria algo que desrespeitasse as palavras do mestre. A madrugada avança, Sócrates não consegue dormir: a fisionomia de Platão e a palavra teimosia não abandonam seus pensamentos. Ele, então, levanta-se cuidadosamente para não acordar Xantipa, reúne os manuscritos escondidos sob o piso da sala (todos os que tinha intento de publicar postumamente através de Platão) e os queima, um a um, no terreno ao lado de casa.

(Conto inédito, pertencente ao livro AMORTALHA, que será publicado em outubro de 2017 pela editora Patuá)