17 de fevereiro de 2017

O retrato grandioso de um cineasta humanista

 

Uma biografia de diretor de cinema cuja tradução para o Português nunca foi feita e poderia beneficiar muito os cinéfilos brasileiros é “David Lean”, de Kevin Brownlow, da Faber & Faber, de 1996. É necessário importá-la e o livro é um calhamaço um pouco intimidador de 810 páginas, mas o interesse nunca se perde.

É essencial para quem queira saber mais sobre David Lean. O ator Alec Guiness, que esteve presente em tantos de seus filmes, diz na capa: “I cannot imagine it done better”. Ótima referência, porque Guiness é um dos rostos definidores do cinema de Lean. Esta capa traz o diretor como uma espécie de titã a lutar contra os elementos, na filmagem da tormenta marítima de “A filha de Ryan”, com uma câmera de 70 mm.

O tom do livro é reverente, inscrevendo Lean numa estirpe de heróis. O ranço de fã que Brownlow às vezes demonstra pode ser um pouco aborrecido para alguns leitores, mas é quase impossível escapar a ele quando se tem um homem realmente admirável a biografar. Mas, um pouco dessa reverência é atenuada por uma vinheta que traz Lean como na efígie de um imperador romano que padecesse de clássica megalomania. De modo que Brownlow não estava tão alheio assim às críticas de arrogante que alguns fizeram a ele.

Polêmico, Lean sempre foi. Seus filmes começaram por ser estritamente ingleses, e ele fez duas grandes adaptações de livros de Charles Dickens, “Grandes esperanças” e “Oliver Twist” e “Desencanto”, sucesso romântico que não pode ser visto unicamente assim (e foi refeito canhestramente como “Amor à primeira vista”, pelo cinema americano). Era bom para essas histórias de amor casto sufocado pela repressão, mas ruim para o humor: “Uma mulher do outro mundo” (“Blithe spirit”), adaptado de uma peça de Noel Coward, existe em DVD no Brasil e pode ser visto pelos estudiosos de Lean hoje em dia – é uma peça anacrônica em que a afetação tipicamente inglesa não consegue ser atenuada pelo humor, com um Rex Harrison bem enfadonho no papel principal. Mas a mão de Lean para o romantismo racionalmente reprimido funciona às maravilhas, outra vez, em “Quando o coração floresce”, filmado em Veneza com Katharine Hepburn.

Pois a carreira inglesa, claro, deu lugar, com pompas, à carreira de um David Lean internacional, associado a grandes produtores norte-americanos, em “A ponte do Rio Kwai”, que foi quando se começou a vê-lo como um diretor popular de fato. E aí ele sofreu objeções, como as de François Truffaut, que o rotulou como inglês e acadêmico demais em seu livro “Os filmes de minha vida”. Truffaut desprezava o gigantismo dessas produções, que lhe deram prêmios Oscar em penca e reconhecimento do público e da crítica. A grandeza de “Lawrence da Arábia” teria algo dos mamutes medíocres inchados por dólares que foram alguns filmes daqueles anos? O típico esforço “épico” daqueles anos não era o de Lean, mas sim “Ben-Hur”, grotesca utilização do nome de diretor de William Wyler para um filme frágil em que “grandeza” significava elefantíase, trilha sonora de Miklos Rosza e o sangue de Cristo “lavando os pecados do mundo” no final.  Truffaut não  foi justo, porque Lean tinha mão intimista e, quando dilatada, um gigantismo autêntico.

Nos anos 1960, Lean tornou-se um anacronismo ressentido. O cinema que ele fazia começou a ser contestado por gente como Truffaut e toda a “Nouvelle Vague”, pela década marcada por rebeldia juvenil, mudanças de comportamento e por um cinema muito mais informal, descuidado, barato, feitos por cineastas sem formação acadêmica de qualquer espécie que queriam expressar idéias em geral “revolucionárias” cuja ingenuidade hoje em dia nos dão consideráveis urticárias. No livro de Brownlow, ficamos sabendo que ele não se dava ao trabalho para ver esse tipo de filme, à la Godard ou outro diretor, que não combinava mesmo com o seu espírito.

Mas a crítica que se fez a Lean naqueles anos tinha certa procedência, como se provou depois. Pois a sutileza em escala épica de “Lawrence da Arábia” degenerou no esforço malogrado de “Doutor Jivago”, que foi sucesso popular, mas se afundava na frouxidão e em múltiplas direções, só decolando emotivamente sob o tema musical excessivamente sentimental e opressivo de Maurice Jarre. Havia Metro demais e Lean de menos nesse filme. E o mesmo problema, Metro e popularidade em excesso, acabou por afetar gravemente “A filha de Ryan”. Pauline Kael esmagou Lean num encontro com críticos em Nova York, devido a essa produção. Ele ficou magoado e se recolheu. Depois disso, ficou 14 anos sem filmar e só voltou à tona com “Passagem para a Índia”, em 1984.

As contestações que a crítica fazia a Lean, naqueles anos de superproduções, parecem não fazer mais sentido. Numa época como a nossa, em que superproduções são mastodontes repletos de efeitos especiais (que, a despeito de toda a sua ação, mais entorpecem que entusiasmam) como “O senhor dos anéis”, Lean reaparece como um humanista de primeira linha. “Lawrence da Arábia” tem um homem, não gadgets eletrônicos nem seres mágicos e criaturas extraterrestres, provas da inumanidade do cinema atual, em seu centro. Dois minutos no intimismo em “Passagem para a Índia” e se tem todo o perfil da personagem, Adela Quested, e todo o filme, naquela flor cujo perfume ela sente. Uma janela, cuja cortina é agitada pelo vento, se abre, Adela aspira ao perfume noturno da frangipani e a Índia, o desejo, a interdição, tudo está ali. Brownlow diz que a atriz, Judy Davis, que começou as filmagens hostil, pois tinha Lean em baixa conta, quando ele pediu que ela aspirasse o perfume, entendeu por fim que se tratava de um grande diretor.

Esse perfume, esse momento mágico de verdade, capaz de sintetizar toda uma produção, é Cinema de primeiríssima, e já não há mais Leans. Nem Truffauts, nem Kaels. Fomos atirados na mais rasa obviedade e numa infantilidade tecnológica de que parece que tão cedo não iremos sair.