9 de fevereiro de 2017

Considerações acerca da buchada para publicação em site de literatura de circulação nacional

Buchada. Buchada de bode. Tem que ser de bode. Nem de cabra pode.

Não sei se tem noutro lugar do Brasil assim tão frequente além do Nordeste. Não deve ser difícil achar. Nordestino gosta de se espalhar e levar suas tosqueiras. Se você não é daqui, diz aí, já comeu? Se já comeu, qual a sensação?
Uma bola de carne que quase cabe na mão. Definição rápida e exata: bucho costurado com picado dentro.

Não lembro a primeira vez que ouvi falar de buchada. Era pirralho, bem pirralho. Desde que me entendo por gente, a imagem de uma buchada sempre me encabulou. Lá em casa, a gente comia muita bizarrice: preá, coelho, tanajura, rã, mas buchada não. Nem sei por que. Verdade, vou perguntar isso a mamãe (Liguei pra ela, “É o quê, Beto, tá bebo, é?”).

Só fui comer buchada mesmo com dezesseis anos. Na feira de Jaguaribe. Gostei da aventura. Me senti naquele banquete de Indiana Jones e o Templo da Perdição. Devorei a minha, comi até a linha. Pedi outra, mesmo destino. Depois, eu e os outros meninos devoramos o resto que as meninas deixaram. Acabamos num instante com dois litros de coca. Almoço ligeiro, tinha aula de tarde. Aula uma da tarde, já viu, né? Empanturrado. Suadeira. Turica. Aguentei até três e vinte, tive que sair correndo antes do intervalo. Acabei com o banheiro da Escola Técnica. Fui pra casa me aguentando, dois ônibus, com uma cólica da porra. Tive noite de rei. Meu estômago não tava preparado pra algo tão forte. Pirose, azia e o diabo a quatro. Pra aprender a respeitar a buchada.

Do bode se aproveita até o berro. Quem é do Sertão que nunca ouviu isso? É bem coisa que Ariano Suassuna diria. Poderia bem completar assim , “me levaram pra comer em Paris, ô Jesus do céu, não teve um prato que batesse uma boa buchada da minha Taperoá. Ai que saudade da Festa do Bode Rei de Cabaceiras”. Semana passada vi uma foto dele com a mulher. Foto bonita, cheia de bode no background. É, Ariano entendia do assunto bodista.

Toda buchada é boa, menos as péssimas. Comeu gostou, não gostou já era. Não tem esse negócio de ir se acostumando feito açaí, não.

A buchada é a união perfeita entre a gastronomia e o corte e costura. Quem faz buchada pelo menos deve saber fazer almofada. Qual a forma do corte do bucho? Triangular, redondo ou quadrado? E em que momento se corta? Com o bucho cru ou cozinhado? É fácil perceber como essas duas artes se unem, quase um ateliê de costura com panela e fogão. Bucho não encolhe igual a algodão ou poliéster, a pessoa tem que ter pós-graduação em cortagem pra se meter a costurar bucho de bode. Nem imagino como é que são feitos os cálculos de quantas buchadas... Quantas buchadas dá um bode?

Não me pergunte que vísceras botam lá dentro. Não sei, até sei, mas não tenho certeza. Cheguei até a procurar. “Há quem goste de vísceras vermelhas. Há quem goste de vísceras brancas”, o site dizia. Falo por mim, branco ou vermelho, fica tudo a mesma coisa quando sai da panela. Rim, fígado, coração, veia, artéria, couro, nervo, banha, só o creme do creme do bode.

A agulha que costura a linha, compra onde? Em lojas de costura? Me dá aí, moça, oito botões marfim pra camisa social e uma agulha e tubo de linha pra buchada. E se a moça rebater, “Pra bucho mole ou duro?”. Será que tem isso?

É a jaca, é?

E a cor da linha? Rapaz, deve ser branco, bege. Nunca vi antes de cozinhada, só depois. E aí você já sabe, fica tudo aquela cor de burro quando caga.

Mas já vi uma buchada que a cor ficou bem massa. Eram duas linhas, verde e amarela, bem grossas. Isso foi na copa de 2002, comi no dia da estreia do Brasil. Quando a buchada chegou, estranhei, mas não fez diferença não. Será que de alguma maneira a linha interfere no sabor da buchada? Interfere, sim, mas não como você tá pensando. A linha não solta gosto. Não quer ser a estrela do processo. A linha é igual àquele volante da seleção de 2002 que unia o time todo e hoje ninguém lembra do nome. Carregadora de piano, é o que ela é.

Fico só imaginando alternativas à linha. Super Bonder, vá por mim, não cola bucho, só beiço. Grampo, carai, quero nem lembrar, já comi uma buchada com grampo enferrujado. Não rola.

Ano passado passou, no jornal da tarde, vi uma pesquisa da UEPB com apoio do Sebrae. Eles tão usando o próprio bucho como linha. Estranho. Até interessante, mas não, né? Só invejei os orientandos do tal pesquisador. O dia inteiro comendo buchada.

Buchada abusa?

Aí vem o cara chato. Aquele mesmo que tem preguiça de comer caranguejo, “muito trabalho pra pouca carne”. Aí ele vem com a ladainha, “A buchada é até boa, mas a linha, atrapalha geral”. Chatice da porra. Não tem pra onde, toda buchada tem que ter linha. Sem essas invenções de pesquisador do CNPq. Sem a linha volante brocadora, é só bucho enrolando sarapatel. Não dá liga. Magia zero.

A linha da buchada. É um bom título de livro.

Onde cortar a buchada? Faca no meio, no bucho da bicha? Ou no gogó perto da linha? Fique à vontade. No final, não vai importar, o negócio vai estufar e botar pra fora o picado na hora que o bucho abrir. Tem gente que se impressiona com a cena bem na vibe de vídeo do Estado Islâmico, só que ao vivo, no seu prato, em formato portátil.

Os vegetarianos piram quando dão de cara com alguém comendo buchada.

Buchada acompanha arroz. Buchada acompanha macaxeira. Buchada com farinha. Buchada com cachaça. Experimente jogar uma pimenta bem ardida no canto do prato e esfregar o garfo com um pequeno pedaço antes de levar pra boca. Dou sete milissegundos pra você tentar não pensar num gole de cerveja. “Buchada não combina com cerveja”, disse um amigo. Entendo ele com sua ortodoxia. Teve um dia que entrei na padaria e um velho tava comendo buchada com café. Me lembro da cara que fiz, vixe, que velho sem noção. É, quem sou eu pra julgar, né? Pensando bem, aquele pão francês quentinho que o velho passava no molho da buchada bem que...

Pela minha experiência de comedor de buchada, gosto sempre de alertar algumas coisas, além do que já falei das vísceras sendo cuspidas do bucho rasgado. Por exemplo, ensebar a boca comendo buchada faz parte do processo. O céu da boca fica com aquela crosta amarela de sebo rachado. Fazer o quê? Essa iguaria tem uns setenta por cento de gordura, trans, cis... tudo com gosto de graxa boa.

Dica de ouro. Não pegue buchada em restaurante no quilo. Pesa demais e é ruim. O hemisfério norte dela vai tá sempre frio, um grande polo norte gelado fora do caldo.

Será que existe buchada tipo exportação?

A buchada tem que vir só rodeada de molho. Um mar morto de molho que pode ir do laranja ao marrom, dependendo da dose do colorau. Se quiserem servir pra você uma buchada enxugada na toalha de papel, sequinha, acompanhada de alface e três rodelas de tomate, corra. É cilada, Bino.

Ano passado, eu tava em Campina Grande e me levaram pra um restaurante regional gourmet, nova sensação na suplente de capital. Previ logo que ia dar merda. Cheguei lá, sentei e meus olhos foram direto pra um item do cardápio. Saca o nome: Bushada. Sério, Bushada, isso mesmo. E de que esse negócio era feito? Pois bem, não dizia no cardápio. Pra me dizer, lá veio um hipster com especialização na Finlândia e na Venezuela do Norte em desgraçar com tradições locais, “Pele de tilápia envelopando uma pasta de sei lá o quê com alcaparra, alho-poró e sei lá o quê de filé de salmão ao molho de sei lá o quê com um embainhado ao estilo sei lá o quê feito por costureiras de Petrolândia com uma linha biodegradável exportada especialmente de sei lá onde pra...” Porra, buchada de peixe é querer inventar demais. E nem bucho era, couro de peixe, bicho, fala sério. E ainda pior, nem o que tinha dentro eram vísceras. Filé, cara, filé. Se lascar, só faltava enfiar cream cheese pra virar um temaki pra comer de garfo e faca.

E o que fiz? Pedi outra coisa? Não, o corajoso aqui pagou pra ver, “traga esse negócio”. A bicha era feia. Mesmo rodeada de alface e tomate, não dava pra esconder a feiura: um peixe sem rabo e cabeça, direto de um filme gravado em Chernobyl. Era eu vendo e fazendo a mesma cara que os turistas sulistas fazem quando se deparam com uma buchada no buffet do Mangai. Carai, era feio. Eu poderia ter parado aí, né? Não, bora ver dentro. Meti a faca, joguei pimenta e encarei aquela bizarrice. Era eu comendo e lembrando do velho na padaria, sua buchada, o pão quentinho, o café. Pra que merda de restaurante vocês me levaram, galera? Naquela madrugada, já em casa e trancado no banheiro, aconteceu o que previ antes de chegar no tal restaurante, deu merda. Fui rei pela segunda vez na minha vida por causa de uma buchada. Opa, dessa vez foi por causa de uma Bushada.

É, me empolguei na escrita. Posso dizer que me empolguei geral nessas considerações sobre a buchada. É que comi uma maravilhosa nesse fim de semana com Eli, lá no Vila Cariri. Ela não come carne de bode, mas come buchada. Só não gosta de ver quando vou meter a faca no bucho, “vai, termina com isso logo, vai”. ❤ . Não tive como não colocar o coraçãozinho, toma outro, Eli ❤. Saí de lá com a ideia de gravar um vídeo em um restaurante aleatório mostrando todo processo de feitura de uma buchada, desde a chegada do cadáver do bode até o prato ficar prêt-à-porter, ops, prêt-à-manger. E por que não um documentário? E se eu fizesse um projeto pro Ministério da Cultura com um título lacrador? Fiquei horas flutuando no reino das ideias até que derrapei de lá e vim pra cá, página de Word vazia, e eu salivando pra falar tudo isso e muito mais que já sei que vou esquecer.

“Mas Beto, esse teu texto ficou muito longo, corta alguma coisa aí. Quem vai querer saber de buchada? Vão abrir, clicar, ver o tamanho desse negócio e dar o fora. Tu não é Marcia Tiburi, não”. Mas peraí, né, não sou a tal da Tiburi, mas sou de Tibiri. E se eu colocar um título chamativo, bem clickbait mesmo, tipo “Como conversar com um bodista”, que tal? Nathan não vai reclamar quando ver o número de clicks. Um título assim não é de todo mal. Vou falar com Igor Tadeu pra ele bolar uma ilustra legal de um bode, um bode em perfil, ou um prato de buchada pulsando; pago a ele em buchada. Tá longo, mas já acaba.

É que dá raiva. Ninguém fala da buchada em canto nenhum. Não é uma coisa que na hora da morte se diga, “meu deus, vou morrer e nunca comi uma buchada”. Ela tem que ser introduzida no dia a dia do brasileiro. Mostrada em cadeia nacional, assim, na cara da dona de casa. Só pra você ver, já viu William Bonner no Jornal Nacional de sábado terminar com “Boa Noite e cuidado com a buchada”? Não, né? É foda. Saber que a buchada nunca vai virar hashtag no twitter, nem ser cogitada pra botarem como tema do Enem. Precisamos pensar numa reparação histórica pra com a buchada. Vê se Machado de Assis, Drummond ou Clarice Lispector escreveu uma linha sequer sobre a buchada. Não. Pois bem, tou só fazendo a minha parte. Buchada. Buchada. Buchada aos quatro quantos.

Sonho que um dia, sim, vai chegar esse dia, o dia em que um astronauta cearense cortará uma buchada ao vivo pra vinte bilhões de pessoas, direto da estação espacial na órbita de Júpiter. Gravidade zero. Pimenta no talo de ardida. Tudo ao som, ao som de “A cura da homeopatia pelo processo macrobiótico ”, do maior compositor que esse Brasil já teve.

Por ora, fico por aqui.