13 de janeiro de 2017

Sinédoque Brasil, a vista particular de Ricardo Lísias

 

José de Arariboia tem 35 anos e uma obra já conhecida no cenário das artes plásticas brasileiras. Um dia, ele se desvia do trajeto de casa, entra na comunidade Pavão-Pavãozinho e sai de lá sem roupa, numa performance inusitada e dançante até a praia, arrastando consigo dezenas de seguidores que vão se juntando, pouco a pouco, ao bloco carnavalesco. O fato inusitado vira vídeo no YouTube e José ganha um passe livre para envolver toda a comunidade de Pavão-Pavãozinho no seu próximo projeto, desenvolvido em parceria com o traficante Biribó. Essa é a premissa do ótimo A vista particular, novo romance de Ricardo Lísias.

Lísias investe em uma narrativa satírica que aborda, com um humor político e vigoroso, questões diversas do Brasil contemporâneo – do cenário da arte à truculência da PM – num jogo constante entre o real e o farsesco que acostumamos a ver nos livros do autor. O que ele faz em seu trabalho anterior, Inquérito Policial: Família Tobias, com foco no autor-personagem Ricardo Lísias, agora realiza numa esfera mais ampla e complexa.

Ainda que se trate de uma sátira, que pede, no decorrer do texto, algum exagero cômico, os personagens mais fortes da trama, José Arariboia e Biribó, não são caricaturais. José é silencioso e enigmático: quando indagado sobre suas obras, nunca se explica nem se pavoneia. Já o traficante Biribó foge dos estereótipos de comportamento de certo imaginário midiático.

Uma atração à parte, para quem, como eu, curte boa parte dos livros que o autor escreveu até aqui, é notar o trabalho de Lísias com a linguagem e a estrutura de seus livros. A vista particular é narrado em terceira pessoa, por dois narradores, em fragmentos numerados. Uma das camadas, a principal, em algarismos romanos. A outra, uma camada de passagem entre os capítulos, em algarismos arábicos. Em determinado ponto, um dos narradores em terceira pessoa, o da camada de passagem, que apresenta, sempre, um breve resumo do capítulo a ser lido, assume a primeira pessoa e entra em conflito com o narrador da outra. De início achei um recurso meio deslocado no romance, que talvez não mudasse tanto sem esse narrador-apresentador de capítulos. No decorrer da leitura, com o tom teatral ganhando força, achei sua presença bastante coerente, ajudando a criar uma atmosfera de peça antiga transcorrendo em tempo real diante do público.

 

 

A situação central do livro é a transformação da comunidade Pavão-Pavãozinho em uma grande instalação aberta ao público, chamada por Arariboia de Comunidade Brava: turismo Brasil. Ela contém obras abertas à visitação como Família com um filho no tráfico e outro na escola, Viveiro de Aedes Aegypti e Local em que a polícia pega a sua parte. A partir daí, a instalação começa a se sobrepor ao real e ganhar independência, a ponto de incorporar elementos reais e bizarros do antigo território, até os seus conflitos. A situação intriga e nos prende na teia narrativa de um jogo de máscaras: que exposição é essa que transforma a violência e a guerra de classes em objetos artísticos particulares, deslocados do real?

Alguns leitores citaram um livro-chave para a compreensão do romance, A sociedade do espetáculo, de Debord, mas prefiro lê-lo sob a ótica de Jean Baudrillhard. Lísias fala, afinal, de um mundo imerso nos simulacros. Diz o livro de Eclesiastes, em versículos utilizados como epígrafe por Baudrillard em Simulacros e Simulações:  “O simulacro nunca é aquilo que esconde a verdade. É a verdade que esconde que não existe. O simulacro é verdadeiro”. Em seu famoso livro, Baudrillhard quebra com a noção platônica da caverna irreal em contraposição ao exterior verdadeiro.

Os simulacros não escondem a realidade, mas a revelam e compõem. Baudrillhard cita ainda um conto de Borges em que cartógrafos são contratados por um imperador para construir um mapa abrangente do reino. No final das contas, o mapa fica tão perfeito que acaba sobrepondo, completamente, o território do império. O que passa a existir do antigo reino, o "mundo verdadeiro", Borges nos diz, são os minúsculos locais onde o mapa está obstruído. Eis o ponto de discordância na versão de Baudrillard dessa alegoria. Para ele, não existe mais nada embaixo do mapa.

Em A vista particular, uma cena bastante ilustrativa desenrola quando a favela Pavão-Pavãozinho original é tomada por um incêndio, mas a exposição, que nesse ponto já incorporou, como funcionários-moradores, as pessoas que lá viviam, continua a existir em outro lugar, tornando-se a única referência do antigo espaço.

Talvez o romance faça jus a uma espécie de irrealidade real contemporânea, um cenário em que as coisas parecem se dissolver embaixo da camada midiática e delirante dos fatos, quando Rio, Brasil e mundo mais parecem um mapa sem território de origem.

Restam, apesar de tudo, olhares de resistência às opressões desta época. Nesse ponto, a ambiguidade do título sintetiza muito bem o livro. A vista particular tanto remete a um espaço público subitamente transformado em espaço privado como também à visão de mundo particular do artista, seja ele José Arariboia ou Ricardo Lísias.