4 de janeiro de 2017

A poesia de Ricardo Escudeiro

Ricardo Escudeiro nasceu em Santo André-SP, em 1984, onde vive. É autor dos livros de poemas “rachar átomos e depois” (Editora Patuá, 2016) e “tempo espaço re tratos” (Editora Patuá, 2014). Graduado em Letras na USP, desenvolve projeto de mestrado com interesse em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e Estudos de Gênero. Assina a coluna “desglutição”, no Portal Heráclito. Atua no ensino fundamental II, no ensino médio e como assistente editorial na Patuá.
do fundamentalismo de um lar

mariazinha cresceu
em uma casa bem família
com pai de família
na patente mais alta
bem cidadão de bem

firmemente orientada
a ser mulher extremamente
direita
docilmente
pela voz materna domesticada

seja vaso e escrava
mais nada

mais ou menos
quando deixava de ser menina
se percebeu
gostando de meninas

a mulher que nela se precipitava
divagou sobre as reações
do tal lá do patente alta
algumas gravadas no espelho
por vezes em segredo
negado
rosto de mãe
trincado pela mão de macho

no quarto sozinha
enquanto a corda terminava de estrangulá-la
seu último sopro aliviou

já nem mulher nem menina
passa agora
a mais nada

e desabitou a casa

 

*
kuzuri

tateio
o que não se segura
só isso

e as baratas e os wolverines e os gojiras

sobrevivem
a atômicos ataques

não morre
também
esse animal pequeno
módico
índice de imaterialidades
que levamos dentro até mesmo

sem
essa de

pertencimento

sem
essa de

acredito falar por todos

quando o fora não existe
a ferocidade do renascimento
só de quem já ficou
entre o que pendula e a bigorna

 

*
audição cega

The Voice Angola

“Whisper words of wisdom
Let it be”
(The Beatles apud Alfredo Yungi)

sonorizar a extensão
de uma vala
de uma presença
de uma dor
da privação de coisa qualquer
urgente ou desnecessária
dedilhar escalas inexistentes com dedos leigos
de mãos leigas que não sabem se ficam no bolso
ou tamborilam o ritmo no nada

entalhar música no ar
raro efeito
quando da falta
das inexatas ferramentas
dentro do som
de dentro das suas vozes
moldamos todos os nossos
instrumentos transparentes
de nossos músicos imaginados

e estragar a solenidade fechada
na cerrada pálpebra do que se diz
história
e na semínima que é aquela eternidade
de visão ofuscada
enquanto o breu interior negocia com o clarão
de janela bruscamente escancarada
deixar-se calar pelo som
das gargantas das almas silenciadas

e não são já mais os fantasmas
viajantes solitários