15 de novembro de 2016

Jeito de entender a ausência

Tínhamos planos.

Era começo de setembro, e Antonio Carlos Viana me escreveu dizendo que o médico o autorizara a viajar. Há meses ele havia me dito que faria uma espécie de turnê literária por algumas cidades do Brasil para falar de sua obra. A ideia era essa, falar livremente de literatura e dos livros por ele escritos, para o público leitor presente. Tudo aos cuidados do Sesc.

Antonio estava animado. Sempre se alegrava quando se tratava de falar de livros, de literatura, essa que era a arte que tomou para si durante toda a vida, desde os tempos em que ainda era professor de adolescentes, quando começou a escrever contos.

Segundo sua agenda, no dia 14 de outubro ele estaria em Fortaleza, cidade onde moro. Combinamos de sair para jantar, conversar sobre literatura, sobre o livro que eu iria lançar no final do mês e do qual ele chegou a ler quase a metade dos contos, dando opiniões, louvando o que gostava e assinalando o que faria diferente. Havia me pedido, reiteradas vezes, para que eu não deixasse de levar um exemplar para ele no dia do nosso encontro. Comecei a planejar, na minha cabeça, o restaurante onde jantaríamos juntos, e os muitos assuntos que conversaríamos ao longo de uma agradável e estimulante noite na qual beberíamos e comeríamos o que desse vontade.

No dia 14 de outubro, contudo, depois de um breve périplo ao redor de incertezas e esperanças, recebo a mensagem que tanto temia: “Foi-se”.

Antes disso, acompanhei junto com o André, filho do Antonio Carlos e também meu amigo, do momento em que ele foi internado até o instante em que o tempo do querido amigo se extinguiu para sempre nessa vida.

Hoje faz um mês que seu corpo foi encaminhado para Salvador para ser cremado, um mês que sua inacreditável ausência aperta o peito e lá de dentro, grita. Eis o nome disso: saudade.

Fui apresentado a Antonio Carlos Viana através do André, de quem eu acabara de ler o romance O doente, em abril de 2014. Você conhece a literatura do meu pai?, perguntou-me ele. E foi assim que eu fui apresentado à obra de Antonio Carlos Viana. Curta, apenas seis livros, três dos quais verdadeiras raridades. Comecei por Cine Privê, livro que me tirou o chão, me deixou tonto. Como alguém podia escrever sobre aquelas coisas daquele jeito? Antonio Carlos Viana podia. Em seguida, li Aberto está o inferno, livro de 2004 e, alguns meses depois, Jeito de matar lagartas, que havia sido lançado em fevereiro de 2015. Eu estava certo de que havia encontrado ali um mestre, e fiz questão de dizer isso a ele. Conversamos muito por e-mail, compartilhando ideias e impressões sobre literatura. Em seguida, quando ele resolveu se juntar ao Facebook, do qual se tornou assaz frequentador, ele mesmo tomou a iniciativa de me adicionar e iniciar as conversas, que ocorriam com uma frequência de urgência, mas fingindo calma, paciência, como se tivéssemos adiante todos os dias que desejávamos.

Sempre fui tão sedento do que ele tivesse a dizer, que tomei coragem para enviar-lhe contos que eu vinha escrevendo para o meu livro. Mandei-lhe cinco contos e pedi: escolha um, por favor, e opine sobre ele. Qual não foi a minha surpresa quando eu recebi comentários a respeito de todos, com sugestões e a assertiva: Marco, você é escritor. Você seguramente nasceu pra ser contista. Naturalmente, nessa hora, tremi. E foi ali que senti o tamanho da generosidade do homem que agora se me dava a conhecer. Justamente ele, que tinha fama de casmurro, de homem fechado em si mesmo. Da vida a gente guarda certos mistérios sem procurar entendê-los. Este será para sempre um deles, que aceitei com reverência.

Soube então que ele iria fazer um lançamento do Jeito de matar lagartas em sua cidade, Aracaju. Não pensei duas vezes: era preciso ir lá. Eu tinha que dar um abraço naquele homem e em seu filho, que também lançaria seu próprio livro, num evento conjunto inesquecível. Piegas como possa parecer, eu não poderia deixar de ver e prestigiar dois escritores de larga envergadura, pelos quais eu nutria sentimentos de gratidão e respeito inomináveis.

Fui recebido por ambos com efusão, num evento com tanta gente vinda de toda parte abraçá-los. Àquela época, eu já sabia do câncer do Antonio Carlos, é claro. Retirei de mim uma fé que eu não sabia que tinha, para plantá-la dentro dele, que também encontrou em si a sua maneira de acreditar no amor, nas amizades que a vida traz, no restabelecimento da saúde e, sobretudo, na importância de permanecer vivo para usufruir de tudo isso.

Meu amigo foi cremado no dia em que deveríamos estar à mesa, jantando, conversando, sorrindo. Seria ali que eu entregaria um exemplar do meu livro para ele. Eu já conseguia até imaginar a cara de menino envergonhado dele quando visse seu nome impresso no livro, que é dedicado a ele, e a frase, “Você quer me matar, Marco, eu não mereço tanto!”. Não tive tempo de fazer a surpresa. Não deu. Apesar disso, não vejo isso como uma rasteira da Vida – ou da Morte. Foram dois anos e meio de uma amizade permeada por risos, dores, confidências mútuas, projetos para o futuro e a indefectível inclinação que Antonio Carlos Viana tinha para a generosidade. Pouquíssimas vezes vi na vida um ser humano que já nasceu predisposto a estender a mão, a compartilhar o que sabia, a acolher um escritor que nascia como se dissesse: “Toma essas sementes que agora te dou. Plante-as perto de si, lance-as ao vento, não importa. Acredito em você e na sua capacidade de julgamento para fazer com elas o que melhor lhe aprouver. São suas. É certo que umas darão em nada, outras se tornarão árvores gigantescas, assim é a vida. Mas plante e cuide: teu caminho é este”.

Esses trinta dias sem você no mundo não têm sido fáceis, meu amigo. Sei que, ao virar pó, você saiu de um encantamento para outro. Deixou do lado de cá, porém, uma obra que se mostrará imortal, e também as sementes que carrego comigo e que lançarei pelo caminho, sementes e caminhos tão meus quanto seus, com a certeza de que, para os que vierem gerações e gerações depois, se depararem com as árvores seculares em toda parte, que continuarão contando as suas histórias, e que terão, gravadas em si, o teu nome.

Você sempre estará tão vivo quanto presente tivermos.